domingo, 28 de janeiro de 2007

A ÚLTIMA BARREIRA


ESCREVEU VLADIMIR JANKÉLÉVITCH (1903-1985): «A morte na primeira pessoa, isto é, a minha, já não poderei falar dela, porque se trata, efectivamente, da ‘minha’ morte». Por isso - acrescenta - «resta a morte na segunda pessoa, que é a morte do próximo», ou seja, a que mais se assemelha à minha «sem ser a minha» e, também, «sem ser a morte impessoal e anónima do fenómeno social». É a morte de «outra pessoa que não eu e, ao mesmo tempo, é a que me toca mais de perto». A «filosofia da morte», para quem pensa nela ou sobre ela, «é produzida para nós pelo próximo que está ao nosso lado».

Tinha 18 anos quando fui confrontado pela primeira vez com a morte na segunda pessoa, a morte de alguém muito próximo de mim e que eu amava: meu pai. Tinha ido visitá-lo ao hospital numa tarde soalheira de Maio de 1963. Estava inconsciente e muito mal, numa cama dos «cuidados intensivos», após uma operação delicada e de alto risco. Apesar disso, não podia nem queria imaginar ou, sequer, admitir a possibilidade de ele morrer. Tinha 44 anos e morreu nessa noite, sozinho, na cama do hospital. Creio que se morre sempre sozinho, numa solidão imensa, por muitas que sejam as pessoas que estão por perto. «Alguém nasceu ou morreu acompanhado, porventura?» - pergunta António Lobo Antunes, na belíssima crónica que publicou na Visão em 28 de Dezembro.

Minha mãe morreu dois dias antes, em 26 de Dezembro, na cama de um hospital de Roma, a cidade onde viveu quase toda a sua vida. Tinha 81 anos. Soube da sua morte por telemóvel. Mas a voz de quem me falou pareceu-me, primeiro, ser a dela. Regozijei-me. E mais estranha foi a sensação, ao tomar consciência da sua imobilidade definitiva e irrevogável. Quebrou-se, assim, a última barreira. Torno a citar Jankélévitch: «Quando desaparecem os nossos pais, desaparece a última barreira biológica. Depois, é a nossa vez. E essa não é uma ideia muito agradável». Leio agora as interrogações de um pintor, António Dacosta (1914-1990), num recorte do DN : «Porque é que se nasce e se morre? É absurdo, não é? Há um apelo de morte que se insinua pouco a pouco em nós».

É provável que, ao escrever esta breve crónica sobre a morte na segunda pessoa, neste caso sobre a morte dos meus pais, eu esteja a fazer batota. Essa «batota essencial» de que também falou Jankélévitch e que consiste em «aplicar a morte aos outros através de uma relação perpétua e de um adiamento». Dito de outro modo: «Tenho consciência da morte e sei que morrerei, mas não o creio». Ou, então, como disse Jacques Madaule: «Sei que morrerei, mas não acredito nisso». Um contra-senso. Tal como a morte, «que dá um sentido à vida, ao mesmo tempo que lhe retira esse sentido». E uma ironia, sobre a qual também escreveu Jankélévitch: «A ironia, que já não teme as surpresas, joga com o perigo». Neste caso, perigo de morte, abatida que foi a última barreira. Além do nada que é a morte, «quase nada é desprezível, quase nada é indispensável». Daí a derradeira das ironias desse grande filósofo: «A humanidade é eterna; eu não, infelizmente!».

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