domingo, 28 de janeiro de 2007

CESARINY PORTÁTIL


O NOME. «O nome desfigura as coisas» - dizia Pascoaes. E o poeta achava que o dele não lhe caía bem. Provocava nele «uma contracção com os dentes». Considerava-o «uma imposição violenta / uma cutilada atroz porque atrozmente desleal». No poema A Antonin Artaud, questionava com ironia «semelhante feixe de estruturas»: «Como assim Mário como assim Cesariny como assim / ó meu deus de Vasconcelos?».

A morte. Não se sabe se foi «uma morte loura / simpática / acolhedora», se «uma morte boa / a uma boa hora», se «uma morte naniôra», como no coro dos maus oficiais de serviço na corte de epaminondas, imperador. Se «já nada temos a fazer sobre a Terra esperemos de / olhos fechados a passagem do vento». Passou a morte «por um domingo extenso e plácido», como num dos versos do Manual de Prestidigitação.

O funeral. Não o enterro. Porque não se enterra um corpo num gavetão. Foi sob uma luz cinzenta e a água da chuva. No cemitério ó meu deus dos Prazeres! «Lá passam as gabardines a caminho do Inverno / este é o melhor tempo da minha vida / o melhor o mais belo o mais lúcido o mais da / minha vida». O que a morte escolheu.

As gabardines. Eram poucas. O poeta, como disse sua irmã Henriette, não tinha «vaidade nenhuma», era «do mais modesto que pode haver». Insusceptível, por isso, de atrair pomposos representantes dos poderes fácticos. Além das gabardines, estava só um gato preto. Era tão doce e tão manso, que se deixou afagar por uma rapariga loura, dona de um exemplar genuíno, o número 81, de A Cidade queimada. «Está pois tudo certo, ó ‘Deus dos cemitérios pequenos’?». A mansuetude do gato diz-lhe que sim.

A eternidade. Não confundir com imortalidade. «Como é que o animal que fuma pode crer na imortalidade?» - perguntava Pascoaes. Mas a eternidade, se existe, deve ser como no poema podendo servir de posfácio: um lugar em que «há praças onde esculpir um lírio / zonas subtis de propagação do azul / gestos sem dono / barcos sob as flores / uma canção para ouvir-te chegar». Tal como no fim do «estranho poema» Pena Capital - «o último de nome religioso escrito pelo Autor» - «o Poeta regressa ao seu atelier nos astros, que a sua governanta encheu de flores». Já lá está «exorcismando».

O azul. Propaga-se, quer na pintura do poeta, quer na poesia do pintor. O Azul é mesmo convidado a ir com o Poeta e o António para «as praias da alma». «Convidemos o Azul por uma questão de princípio». E, quando «António morre», «o Azul, o Poeta, o Desmaiado e a Morte, descem em lentidão pelo ar abaixo». Pascoaes, mágico e sábio da montanha, dizia que «o pensamento é só cor azul ou imagem íntima da luz».

Azul, livre e portátil. Assim é a poesia de Cesariny. Cabe toda na boîte-en-valise de Marcel Duchamp, «sem dúvida a tentativa mais genial de exaltar o portátil em arte» - como escreve Enrique Vila-Matas. Espírito inovador, vontade constante de transgressão, sexualidade extrema, nomadismo infatigável, ausência de grandes propósitos. Claridade afinal tão azul como a que emana da «máquina risonha» de Walter Benjamin.

«DN» - 8 Dez 06
http://sorumbatico.blogspot.com/2006/12/cesariny-porttil.html

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