sábado, 12 de dezembro de 2009

O Presidente perante a crise

A FIGURA DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA foi concebida como um elemento essencial de equilíbrio no nosso sistema político-constitucional. A sua legitimidade democrática directa, o conjunto de poderes que lhe são atribuídos pela Constituição e o facto de se tratar de um órgão de soberania unipessoal conferem-lhe uma influência política muito mais ampla do que aquela que resulta da mera tradução formal dos seus poderes.

Inserido num triângulo institucional cujos outros vértices são a Assembleia da República e o Governo, o PR constitui uma referência incontornável para a opinião pública e para os cidadãos em geral, que o consideram um poder moderador e arbitral apto a intervir para pôr termo às crises políticas ou evitar o seu agravamento, garantindo a estabilidade política e o regular funcionamento das instituições democráticas.

Em períodos de crise e, sobretudo, quando não exista uma maioria parlamentar absoluta e homogénea, o PR transforma-se no verdadeiro centro de gravidade do nosso sistema político-constitucional, uma vez que é dele que depende, em última instância, a decisão sobre a resolução das crises políticas. Por isso mesmo, o PR deve assumir uma posição suprapartidária e equidistante em relação aos partidos políticos, exercendo uma verdadeira magistratura de influência como Presidente de todos os portugueses.

Não será de mais salientar a importância que assumem a personalidade e o estilo de actuação política de quem é eleito para o cargo, tanto no que respeita à configuração do órgão de soberania e à conformação dos seus poderes em concreto, como no que se refere à interpretação pessoal que faz dos limites da função que vai desempenhar.

Por isso, quase tão importante como a legitimidade democrática directa do PR, é a sua legitimidade carismática, ou mesmo a sua autoridade carismática, no sentido que lhe atribuiu Max Weber. Tal autoridade deve ser interpretada, não como o exercício de um contrapoder em permanente oposição à maioria que governa o país, mas sim numa perspectiva de solidariedade e cooperação institucionais com o Governo e a AR.

À luz deste quadro político-constitucional, é evidente que o actual PR não pode comportar-se como um espectador distante que vai assistindo, com aparente indiferença, ao desenrolar da crise política em curso. A excessiva crispação do Governo, a guerrilha parlamentar que lhe tem sido movida pelos partidos da oposição e o preocupante estado de paranóia litigante em que se encontra o PSD, não são de molde a tranquilizar o país quanto à eficácia do combate à gravíssima crise económica e social que o afecta.

Campeão da luta contra as «forças de bloqueio» quando era primeiro-ministro, o actual PR não pode agora assistir sem pestanejar às tentativas para bloquear a actividade de um Governo que empossou há poucas semanas. Infelizmente, a desastrada actuação que teve no lamentável episódio das «escutas belenenses» afectou seriamente a sua credibilidade política. A legitimidade democrática do PR não está em causa, mas a sua autoridade carismática deixa muito a desejar. E isso não é nada bom para o país.

Expresso de 12 de Dezembro de 2009

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Obama, Bush, a mesma luta!

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COMO DIZ o portuguesíssimo ditado popular: «Atrás de mim virá quem de mim bom fará!».

Disse Barak Obama, na cerimónia em que recebeu o PRÉMIO NOBEL DA PAZ:

«Haverá sempre momentos em que as nações considerarão o uso da força não só necessário como moralmente justificável».
«Enfrento o mundo tal como é, e não posso ficar de braços cruzados perante ameaças ao povo americano».

Ora esperem lá! Mas não foi exactamente isto que disse o George W. Bush ao invadir o Afeganistão e depois o Iraque?!

Por que raio é que o idiota e reaccionário George W. Bush é uma besta da guerra ao dizer coisas assim, e o inefável Barak Obama é um anjo da paz ao dizer exactamente as mesmas coisas?!
Por que raio é que o Afeganistão é muito mal invadido se o for pelo George W. Bush, e muito bem invadido se o for pelo Barak Obama?!
Por que raio é que queriam dar ao George W. Bush o Prémio Nobel da Estupidez e da Maldade, exactamente pelas mesmas razões que atribuiram agora ao Barak Obama o Prémio Nobel da Paz (e da Bondade)?!

Enfim – e como dizia o outro, no filme «Some Like it Hot» – «nobody is perfect»!

É por isso que eu digo: «Obama, Bush, a mesma luta!».

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Corrupção – sempre mais

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DEPOIS DE LER o que revelam vários jornais sobre a dimensão da «rede tentacular» alegadamente montada por um sucateiro multimilionário, para conseguir ser favorecido na adjudicação dos «negócios» que o enriquecem, sou levado a concluir que, apesar da idade que tenho, continuo a ser demasiado ingénuo: ainda me escandalizo e surpreendo com as proporções que podem atingir a venalidade e a corrupção de certos políticos de meia-tigela e de certos empresários de alto coturno, cuja promiscuidade repugna.

Claro que são todos inocentes até se provar (e se se provar) o contrário. Mas, se partirmos do princípio de que a PJ e o MP não andam a urdir conspirações e cabalas de tal dimensão e tanto detalhe, confirma-se a ideia de que a ganância não tem limites, isto é: quem tudo vai tendo e obtendo, nunca estará satisfeito e há-de querer sempre mais.

(A foto é a que ilustra a notícia, no Público online).

domingo, 18 de outubro de 2009

A «exuberância irracional» está de volta

O JORNAL 24 HORAS noticiava dia 17, em primeira página, que três dos magnatas mais ricos de Portugal já recuperaram boa parte das fortunas que terão perdido com o crash mundial provocado pela falência do Lehman Brothers, em Setembro de 2008.

As quantias obscenas que esses multimilionários lusitanos recuperaram, em meia dúzia de meses de subidas consecutivas na bolsa, e sem levantarem os seus riquíssimos rabos das cadeiras do poder económico e financeiro que detêm, reflectem bem o clima de euforia que voltou a instalar-se artificialmente, com o súbito regresso dos mercados financeiros à «exuberância irracional» de que falava Alan Greenspan há poucos anos.

Poucos dias antes, a 14, em Wall Street, já o índice Dow Jones tinha quebrado a «barreira psicológica» dos 10.000 pontos, confirmando que está a afluir, de novo, muito dinheiro às bolsas de todo o mundo. Dinheiro esse que, infelizmente, não significa mais investimento produtivo criador de empregos e gerador de rendimentos. Pelo contrário, é dinheiro que se destina a inflacionar artificiosamente o valor dos activos já existentes e que apenas aumenta a riqueza de quem possui e de quem transacciona esses activos.

A revista Visão também noticiava há poucos dias que, «desde o início de 2009, o principal índice da Bolsa de Lisboa já subiu quase 40 % e, em relação a Março, quando bateu no fundo, os ganhos elevam-se a cerca de 55 por cento». Será que os milionários portugueses que estão a recuperar o que perderam vão investir na criação de empregos? Será que um desses milionários vai readmitir os 193 trabalhadores que já despediu?

O regresso da especulação financeira desenfreada, que esteve na origem da crise brutal que ainda estamos a atravessar em todo o mundo, significa que o «capitalismo de casino» está de volta. E o mais escandaloso é que foram gastos milhares de milhões em dinheiros públicos, não só para voltar a estimular a economia, mas também para evitar a bancarrota de inúmeras instituições financeiras privadas. E aquilo a que estamos agora a assistir é uma vergonha: enquanto as grandes fortunas, produto da especulação bolsista, estão a reconstituir-se rapidamente, o desemprego continua a crescer em todo o lado.

O G-20 aprovou uma óptima agenda reformista, mas a verdade é que tarda em reformar as grandes instituições financeiras internacionais e em impor novas regras que permitam um regulação mais rigorosa e eficaz dos fluxos financeiros a nível mundial. Quando acordar será tarde. A exuberância irracional já tomou conta disto outra vez.

sábado, 10 de outubro de 2009

Nobel da Paz, um equívoco lamentável

ATRIBUIR O PRÉMIO NOBEL da Paz a um presidente dos EUA, Barak Obama, que aposta na intensificação da guerra no Afeganistão, é tão contraditório como atribuir esse mesmo prémio ao anterior Presidente dos EUA, George W. Bush, por ter invadido o Iraque com o pretexto de alcançar a Paz no Mundo.

Nunca compreendi que o Nobel da Paz tivesse sido atribuído anteriormente a um «Senhor da Guerra» como Henry Kissinger, pelo facto de este ter negociado a paz num Vietname arrasado pelos tapetes de bombas «made in USA». Sobretudo, tratando-se de um dos políticos mais cínicos que alguma vez exerceram o poder em Washington – e politicamente responsável pelo golpe de Estado de Pinochet no Chile.

Tenho admiração por Barak Obama e regozijei-me com a sua vitória sobre John McCain. Mas sempre achei um erro que ele tivesse apostado na intensificação da guerra no Afeganistão, como compensação para uma retirada, muito duvidosa, do Iraque. Foi como se tivesse dado razão a George W. Bush, quando este sustentou que, para lutar contra o terrorismo, era preciso fazer a guerra, ao preço de muitos milhares de mortos.

Ao atribuir o Prémio Nobel da Paz a um Presidente que aposta na intensificação de uma guerra inútil e perigosa para a paz no Mundo, o comité norueguês que atribui o prémio cravou mais alguns pregos no caixão de um Nobel desacreditado. Uma coisa é a Paz no Mundo, outra é a perigosa «Pax Americana». Eis o lamentável equívoco.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Manuela, a Fatalista

MANUELA FERREIRA LEITE continua a fazer tristes figuras. É uma pobre líder sem rumo e sem futuro. Está a afogar-se politicamente e quer arrastar consigo para o fundo todos aqueles que, na opinião dela, terão contribuído para o naufrágio da sua liderança política: quer os seus adversários fora do partido, que ela trata como sinistros inimigos; quer os seus adversários dentro do partido, que ela gostaria de mutilar politicamente. A sua fraca coroa de glória, antes de regressar ao anonimato político, seria a instabilidade e a ingovernabilidade do país. E, já agora, o caos dentro do seu próprio partido.

Manuela Ferreira Leite tornou-se um dos exemplos políticos mais ilustrativos do famoso Princípio de Peter, ao ultrapassar vertiginosamente o seu nível de competência desde que foi eleita presidente do PSD. Seria difícil imaginar a eleição de uma pessoa simultaneamente tão arrogante, incompetente, insensata, tacanha, mesquinha, vingativa e ultramontana como esta senhora politicamente disléxica e adepta do bota-abaixo.

Falta-lhe um mínimo de sensatez e de grandeza que lhe permita contribuir para a governabilidade do país. Perante o quadro político tão complexo resultante das eleições legislativas, e apesar de ter sido claramente derrotada, a senhora continua a destilar ódio contra o seu principal adversário, desejosa de lhe erguer obstáculos e de lhe fazer a vida negra. Sem desdenhar, sequer, a prestimosa ajuda que BE e PCP lhe queiram dar.

O que terá sucedido à direita portuguesa supostamente mais moderada, que não conseguiu nada melhor do que eleger Cavaco Silva Presidente da República e Manuela Ferreira Leite presidente do PSD? Prisioneiro das suas obsessões, Cavaco Silva tornou-se patético. Embriagada pelo seu discurso fatalista, Manuela Ferreira Leite tornou-se fatal para a direita. Assim, não é de espantar que Paulo Portas, politicamente mais hábil e competente, se disponha a recolher os cacos para os colar à sua maneira, à medida que a presidente do PSD se for desvanecendo e este partido for mergulhando no caos.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Uma comunicação lamentável

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O PRIMEIRO-MINISTRO tinha razão: o caso das escutas era um «disparate de Verão» que se prolongou pelo Outono e atingiu agora o seu clímax com esta extraordinária declaração do Presidente da República.

Suspeito de que foi a Lisbeth Salander, a famosa hacker sueca da trilogia «Millenium» (de Stieg Larsson), que se introduziu nos computadores da Presidência…

Agora a sério: nunca imaginei que um Presidente da República fosse capaz de fazer uma comunicação ao país tão ridícula e lamentável. Amalgamou tudo, fugiu ao essencial e agarrou-se a um episódio irrelevante para desculpabilizar as «fontes» da sua Casa Civil e o jornal «Público». Foi inacreditável.

Em suma: a montanha pariu um rato. O grande estabilizador transformou-se no grande perturbador. Decididamente, o prof. Cavaco tem mais jeito para esfinge e mais queda para tabus. Com um Presidente assim, somos nós que não nos sentimos seguros.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Cavaco e Sócrates ajudam Manuela

A TRÊS MESES DAS PRÓXIMAS ELEIÇÕES legislativas, o menos que se pode dizer é que o regime democrático dá sinais de estar com gripe, enquanto os seus actores principais persistem em actuar como vírus. O primeiro-ministro, José Sócrates, continua a dar tiros nos seus próprios pés. A chefe do maior partido da oposição, Manuela Ferreira Leite, insiste em dar largas à sua irritabilidade bacoca, pejada de contradições. O Presidente da República, Cavaco Silva, achou por bem lançar às urtigas o seu dever de isenção.

No tão mediático caso que envolvia a PT, a Prisa e a TVI, o engenheiro Sócrates fez muito mal em negar o conhecimento prévio, afirmando que, apesar da golden share, o Estado não tinha que interferir num negócio entre privados. E ainda fez bastante pior ao rematar o assunto com um erro de palmatória, invocando a golden share para se opor ao negócio. Uma pulsão suicida fê-lo seguir o conselho, no mínimo perverso, que lhe deu o engenheiro João Cravinho em entrevista a Mário Crespo na SIC Notícias.

Neste mesmíssimo caso, também veio mais uma vez ao de cima a irreprimível tendência da drª Manuela Ferreira Leite para uma irritabilidade destrutiva e vazia de conteúdo, típica de quem não mede as afirmações que faz, não sabe a quantas anda, nem tem memória dos erros que cometeu no passado, designadamente enquanto ministra das Finanças. O ódio desta senhora ao engº Sócrates e ao PS cega-a e desmemoria-a.

A chefe do PSD detesta o Estado e adora os privados, mas acabou por incitar à intervenção do Governo na PT, ajudando a dar cabo de um negócio que seria bom para os privados. Esqueceu-se, entretanto, das interferências na PT e na Lusomundo Media, quando era ministra das Finanças do dr. Durão Barroso. A drª Manuela Ferreira Leite tem o carisma de uma ostra e a sensibilidade de um tijolo, mas já se tornou heroína dos órgãos de comunicação social, que ainda há poucas semanas afirmavam que ela era um caso perdido para a política. A perspectiva de ela poder vir a ser chefe do Governo é, no mínimo, preocupante. Mas a memória colectiva é curta: esgota-se em seis meses.

Como se a tanto disparate – de Sócrates e Ferreira Leite – ainda fosse necessário acrescentar uma cereja no topo do bolo, o Presidente da República, Cavaco Silva, não se fez rogado e resolveu lançar às urtigas o seu dever de isenção. Prudentíssimo e distante nos casos do BCP e do BPN (que envolvem alguns ex-membros de Governos seus), não manteve a prudência nem a distância no mediático caso PT/Prisa/TVI, dando um grande encontrão no Governo e uma enorme ajuda à sua ex-ministra da Educação (lembram-se dela?), a pretexto de transparência. Surpreendentemente, Cavaco Silva resolveu ignorar as entidades reguladoras competentes para avaliar a transparência do negócio.

Cada qual à sua maneira, Cavaco e Sócrates ajudam Manuela: um, andando com ela ao colo; o outro, persistindo em cometer sucessivos erros políticos. Qualquer dia já ninguém liga às asneiras e aos disparates constantes da chefe do PSD, promovida de besta a bestial pelos jornais e televisões que temos. Espelho meu, espelho meu…

terça-feira, 9 de junho de 2009

Lições de uma derrota


QUANDO QUEREMOS PARECER-NOS de tal modo com os nossos adversários políticos que nos confundimos com eles, é certo e sabido que, mais cedo ou mais tarde, os eleitores que nos contemplam acabam por preferir os originais às imitações, ou, pura e simplesmente, repudiam os originais e as cópias, por indecente e má figura, optando pelos extremos.

A maioria dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas europeus quis de tal forma identificar-se com a economia liberal de mercado e o turbocapitalismo financeiro, para se afastar das ruínas do comunismo soviético e repudiar os estigmas da extrema-esquerda, que, às tantas e sem dar por isso, já tinha ultrapassado pela direita muitos partidos conservadores, democratas-cristãos e liberais, embrenhando-se paulatinamente na selva de um mercado totalmente desregulado e completamente à deriva.

Esta é uma das boas explicações para se perceber o descrédito de muitos partidos social-democratas, socialistas e trabalhistas, que, ao contrário do que seria de esperar deles, não conseguiram emergir desta grande recessão, desta crise brutal do turbocapitalismo financeiro, como a alternativa mais óbvia e mais credível ao capitalismo ultraliberal defendido e praticado pelos partidos de direita nos últimos trinta anos.

Pior ainda: o «regresso do Estado» foi orquestrado, por razões meramente oportunistas, precisamente por aqueles partidos da direita ultraliberal que mais o torpedearam e que mais fragilizaram os seus alicerces, com a conivência imbecil da social-democracia europeia, cujo excesso de zelo a fez ignorar os mais fracos e mais desfavorecidos.

Será desta que os eleitores da esquerda democrática conseguirão correr de vez com os Blair, os Brown, os Zapateros e os Sócrates do nosso descontentamento, neste terrível inverno do socialismo democrático, outrora de rosto humano?! A resposta não é fácil, quando a social-democracia perde por falta de comparência e de convicções, deixando o terreno livre para a ascensão da demagogia, do populismo e do oportunismo de direita.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Vitorino estará a gozar com Durão?

NUMA ENTREVISTA à TSF e ao DN publicada domingo passado, o dr. António Vitorino, sempre certeiro e bem-humorado, qualificou o dr. Durão Barroso, actual presidente da Comissão Europeia, como «o nosso homem em Havana», ou «o nosso agente em Havana», numa claríssima alusão aos títulos (inglês e português) de um dos romances mais notáveis, divertidos e populares do grande escritor inglês Graham Greene.

Ora bem. Como esta comparação com o personagem principal do romance de Graham Greene é bastante desprimorosa para o dr. Durão Barroso, é caso para perguntar se o dr. António Vitorino, com o seu finíssimo sentido de humor, não estaria a ironizar, ou a gozar, ou mesmo a divertir-se à custa do actual presidente da Comissão Europeia?!

Porque, quem leu o romance de Graham Greene, sabe perfeitamente que o personagem recrutado pelos serviços secretos britânicos é um cidadão inglês obscuro e medíocre que vende aspiradores em Havana há vários anos. E é um homem fraco e vulnerável que se revela capaz de todo o tipo de condescendências, inclusive falsificações e mentiras, só para ganhar o dinheiro que lhe pagam os serviços secretos, que é muito.

Aliás, a mais célebre e divertida falsificação de Mister Wormold (assim se chama o vendedor de aspiradores recrutado como espião) consiste, precisamente, em desenhar o esboço de uma nova arma secreta a partir das peças de um aspirador que ele desmonta na sua loja de Lamparilla Street, em Havana.

Perante isto, a minha dúvida é a seguinte: será que o dr. António Vitorino leu mesmo o romance de Graham Greene, e quis gozar com o dr. Durão Barroso comparando-o com um personagem literário perfeitamente ridículo? Ou será que, tal como o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa, o dr. António Vitorino também já se habituou a citar e a recomendar livros que nunca leu?

Esta é a minha dúvida. Veremos se o dr. António Vitorino a esclarece. Mas aproveitem para ler «Our man in Havana» («O nosso agente em Havana»), se ainda não o leram!

segunda-feira, 25 de maio de 2009

MAIS FANÁTICOS, MENOS PERSPICAZES

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RELATIVAMENTE a alguns comentários mais agressivos - e até insultuosos - que me foram dirigidos, gostaria de salientar que as pessoas mais fanáticas são as menos perspicazes. Por isso mesmo, não percebem que o jornalismo «tablóide» praticado por Manuela Moura Guedes na TVI diminui significativamente a eficácia e a força das «críticas» e das «denúncias» que ela quer fazer.
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Tanta histeria e espalhafato mediáticos deitam por terra o mínimo de objectividade exigível a um jornalista que se preze e desacreditam as reportagens, por vezes excelentes, que servem de fundamento às «críticas» e às «denúncias».
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Quem não compreende isto, não vê um palmo adiante do nariz, nem percebe patavina de jornalismo e de política. Paz à(s) sua(s) alma(s)…

domingo, 24 de maio de 2009

Contra um jornalismo repugnante

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A ENTREVISTA de Manuela Moura Guedes a Marinho Pinto, na TVI, terá sido «empolgante», mas o jornalismo «tablóide» que ela pratica, sem vergonha, é repugnante. Hesito mesmo em considerá-lo jornalismo.
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Por muito imprudente e excessivo que seja o actual Bastonário da Ordem dos Advogados – prejudicando, por vezes, a justeza das suas afirmações e a bondade dos seus propósitos – a verdade é que ele deu provas de uma extraordinária coragem, ao denunciar em directo, cara a cara e sem papas na língua, o verdadeiro escândalo que são as sessões de propaganda política, desonesta e canalha, levadas a cabo, às sextas-feiras, pela mulher do Director-Geral da TVI, Manuela Moura Guedes, que não faz outra coisa que não seja desonrar a profissão.
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Além de indigno, o espectáculo que esta senhora proporciona semanalmente é aflitivo, patético e inestético. E descredibiliza as próprias reportagens que o sustentam. É verdade que já uma vez o Miguel Sousa Tavares a tinha criticado e recriminado em directo. Mas ninguém, até agora, tinha sido capaz de a pôr na ordem, por indecente e má figura.
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Esta lamentável e ridícula senhora não se respeita nem se dá ao respeito. Há muito que devia ter sido chamada à pedra, por violação continuada das mais elementares regras deontológicas da profissão. O problema é que quase todos os jornalistas têm medo e já poucos se prezam, numa profissão cada vez mais condicionada pelo poder económico que a domina e controla. A liberdade de informação é uma treta quando pessoas como Manuela Moura Guedes sentem as costas quentes para fazerem o que ela faz, abusando escandalosamente do poder e do púlpito que lhe concedem num canal de televisão privado.
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O rei vai nu (ou, se preferirem, a rainha). Mas se, depois desta corajosa denúncia, tudo continuar na mesma, então é de recear que o pluralismo e a liberdade de informação estejam em perigo.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

«Pilha-galinhas» e «Pilha-milhões»

UM «PILHA-GALINHAS» é ladrão e vai ser julgado em tribunal dois anos depois de ter roubado duas galinhas. Um «pilha-milhões» é um génio e hão-de passar muitos anos até que o seu improvável crime prescreva, enquanto ele continua a sacar milhões de papo para o ar. Roubar industriosamente é engenho, assaltar galinheiros é desaforo.
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Não espanta a diferença, numa sociedade em que os próprios indicadores oficiais mostram que as desigualdades sociais aumentaram na última década, e em que a justiça se arrasta com a lentidão de um «D. Elvira» no Rally das Camélias quando se trata de julgar os ricos e os poderosos que, por azar, chegam a tribunal. Pois pudera!
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Quando constatamos que se cava cada vez mais fundo o fosso que separa ricos e pobres, ao mesmo tempo que se alarga a enorme distância entre o poder e os cidadãos, o que espanta é que tudo ist
o aconteça numa sociedade governada, rotativamente, há três décadas, ora por pretensos socialistas ora por pretensos social-democratas.
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Como dizia Camilo: «Falta-nos a virtude e a moral; falta-nos o respeito à lei, e a lei que deva respeitar-se; falta-nos esse quase nada que faz dum povo de traficantes e de corruptos uma sociedade de irmãos e de amigos». «Esta frioleira dispensa-se», acrescentava ele, referindo-se a roubos, desaforos, prepotências e «outras bagatelas que desaparecem debaixo dos alicerces dum pomposo caminho-de-ferro». Bruxo!
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NOTA: As crónicas do autor são também afixadas no blogue «Sorumbático», onde é 'contribuidor'. Os desenhos são da autoria de CMR, feitos para a VALOR e a DÍGITO.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O Milagre Segundo Evaristo

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A PRETEXTO DA CRISE, já toda a gente dá de barato qualquer milagre que a Santa Madre Igreja lhe queira impingir. Ninguém protesta, ninguém se escandaliza, mesmo quando é óbvio que ali há falcatrua. Tal é a resignação que nos consome.
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Todavia, o milagre que aconteceu a Dª. Guilhermina de Jesus em Ourém, por via do qual D. Nuno Álvares Pereira passará a ser santo, até podia ser um excelente pretexto para elaborar uma versão lusitana do Miguel Strogoff de Júlio Verne, se alguma das nossas estrelas da literatura light pegasse no assunto e o transformasse num best seller de vão de escada, copiosamente besuntado de óleo de fritar peixe.
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É verdade que o assunto é excessivamente prosaico. A imagem de óleo a ferver a saltar numa frigideira de fritar peixe e que salpica um olho de Dª. Guilhermina de Jesus, não encoraja os nossos génios da literatura pop a colaborar na edificação de uma tão grande falcatrua. Ainda por cima, consta que o filho da miraculada, Carlos Evaristo de seu nome, detém o exclusivo da história. Foi a ele que Dª Guilhermina comunicou o milagre em primeira mão, depois de ter ligado a televisão para confirmar se aquele olho porventura também já conseguiria ver as telenovelas da TVI. «O meu santo curou-me» - exclamou ela. E Carlos Evaristo chamou-lhe um figo. Era dele o exclusivo. E passou a ser ele a contar a história do milagre, em nome de sua mãe.
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O santo, como já bem sabemos, é o nosso Condestável D. Nuno Álvares Pereira, cujo espectro terá sido incomodado na noite de 7 para 8 de Dezembro de 2000 (o ano da beatificação dos pastorinhos, já repararam?!) por Dª. Guilhermina de Jesus, que o terá desafiado a demonstrar que era muito mais competente do que qualquer oftalmologista lusitano. E o espectro não se fez rogado, curando Dª. Guilhermina num abrir e fechar de olhos (talvez a inversa seja mais verdadeira, neste caso).
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Convém esclarecer que isto de milagres é como as bolhas especulativas na alta finança, que levam o seu tempo a inchar até rebentarem com grande estrondo nos bolsos dos cidadãos e, sobretudo, nos balcões do BPN e do BPP.
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Note-se que só agora, nove anos depois do pretenso milagre que curou um olho de Dª. Guilhermina na noite de Ourém, é que a bolha canónica, que então se formou e começou a inchar, finalmente rebentou, qual gigantesco salpico de óleo de fritar peixe, na cabeça de milhares de crentes. Com manifesta vantagem para a Santa Madre Igreja, para a Pátria e para a República, dado que o Presidente Cavaco Silva não hesitou em conceder o aval do Estado à canonização (tal como o Governo não hesitou em conceder o aval do Estado ao BPN e ao BPP).
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Em suma, tendo em conta que D. Nuno Álvares Pereira se finou no século XV, bem se poderá dizer que, do alto de uma frigideira com óleo a ferver, quase seis séculos de História pátria contemplam Dª. Guilhermina de Jesus, a miraculada que já tem garantido nos manuais escolares uma nota de rodapé tão grande como um salpico de óleo.
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Este é o milagre segundo Evaristo, e eu pergunto: há alguma seriedade nisto?

terça-feira, 14 de abril de 2009

Beatificações e canonizações

BEATITUDES REPUBLICANAS
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COM O BEATÍSSIMO APOIO do nosso ilustre Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, está a ser preparada a canonização do Condestável D. Nuno Álvares Pereira. O pretexto, por mais inverosímil que possa parecer, é a milagrosa cura de uma tal Dª. Guilhermina de Jesus, barbaramente atingida por salpicos de óleo no olho esquerdo enquanto fritava peixe. Tal cura ficou a dever-se, para espanto e vergonha dos oftalmologistas, à intercessão do espectro de D. Nuno de Santa Maria, apropriadamente invocado por Dª. Guilhermina de Jesus nas suas orações.
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Este piedoso capítulo da nossa história sacra, que suscita a beatitude republicana do Presidente Cavaco Silva, vem acrescentar-se a outro piedoso capítulo ocorrido há nove anos, com a beatificação dos pastorinhos de Fátima, que também mereceu o beatíssimo apoio do então Presidente da República, Jorge Sampaio, e do então Primeiro-Ministro, António Guterres.
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É, por isso, excelente o pretexto para convidar os leitores a repassarem os olhos por três crónicas escritas e publicadas no semanário EXPRESSO, no ano 2000, a propósito da beatificação dos pastorinhos de Fátima, a que ficou indelevelmente associada essa famosa dupla cor-de-rosa Sampaio-Guterres, orgulho de um socialismo piedoso e beato, a derrapar na «terceira via».
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Face a tais beatitudes, que constituem piedosos precedentes, é bastante difícil que alguém se atreva, nove anos depois, a lançar um salpico de óleo que seja sobre a beatitude do Presidente Cavaco Silva, sobretudo se D. Nuno de Santa Maria estiver alerta. É que Deus não dorme, o Condestável também não e, que se saiba, os pastorinhos de Fátima nunca fritaram peixe…
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14 de Abril de 2009
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1 - A BEATIFICAÇÃO DOS PASTORINHOS

COMO TÃO JUSTAMENTE assevera Eduardo Prado Coelho, ínclito guru da pós-modernidade lusitana, «Portugal vive hoje em diversos tempos simultâneos». Há mesmo tempos - e não os melhores - em que o país revisita os alvores do século XX, com reminiscências que se reportam ao século XIX. Será certamente esse o caso da lúgubre cerimónia de beatificação de dois pastorinhos, que o Papa João Paulo II nos vai proporcionar em Fátima, no próximo dia 13 de Maio, com a solícita presença do Presidente da República e a desvelada participação do Primeiro-Ministro, entre outros digníssimos representantes das forças vivas que dão sentido e cor - não púrpura, mas rosa - ao regime democrático em que vivemos.
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Fátima - seus videntes e seus milagres - é seguramente um daqueles domínios em que a pátria lusitana e alguns dos seus filhos continuam a demonstrar «uma criatividade assinalável e em muitos planos excepcional». Os pastorinhos viram o que EPC não viu. O «forte aroma mariano» que impregna as «aparições» de 1917 (mais de meia dúzia) rescende como o caldo de Tormes descrito pelo Eça em «A Cidade e as Serras». Que digo eu? Ainda é mais forte e aromático! A visão do Inferno, que Nossa Senhora terá revelado às pobres criancinhas, decalcada nessa espécie de catecismo que era a «Missão Abreviada», nada terá ficado a dever à obra-prima de Dante, embora seja mais prosaica. As «Memórias» da Irmã Lúcia, escritas com «obediência» e alguma «repugnância», cerca de três décadas depois das «aparições», fazem inveja ao melhor estilo de Camilo («A Freira no Subterrâneo»), ainda que tenha entrado um bispo na sopa cozinhada pelo cardeal Cerejeira e pelo Estado Novo.
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Mais criativo foi, porém, o «milagre» protagonizado por Maria Emília Santos - a que se levantou e andou depois de 20 anos sem se mexer - com base no qual se tornou possível a tão desejada beatificação dos pastorinhos. Para ele contribuíram decisivamente, não só o genuíno testemunho da «miraculada», mas também a desenvoltura de um tal padre Kondor, a erudição canónica do cardeal Ratzinger e a solicitude de uma família de felizardos - os médicos Felizardo Santos e Fernanda Brum, por acaso casados e especialistas em Medicina Interna - e, ainda, uma jovem recém-formada, por acaso filha dos médicos supracitados e especialista em Psiquiatria. Ao que parece, o «relatório» dos médicos Felizardo e Fernanda, ambos católicos e «servitas» no Santuário de Fátima, terá sido elaborado em tempo «record» - e o processo de beatificação terá ignorado (ou contornado) a legislação canónica, nomeadamente, o «Manual para Instruir os Processos de Canonização». Diz-se, até, que o testemunho da «miraculada» é um poço de contradições, confirmadas pelos seus irmãos e por um médico psiquiatra que a tratou e a pôs a andar muito antes do «milagre». Pelo menos foi isso que revelou o «Expresso» em 31 de Julho de 1999, numa notável investigação jornalística levada a cabo por Graça Rosendo e Mário Robalo, intitulada «Milagre com pés de barro». Mas isso que importa se, como é sabido, o Papa João Paulo II «sempre desejou este milagre»?!
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Em devido tempo, Frei Bento Domingues afirmou: «Conseguiu-se fazer de Fátima o maior concentrado do mau gosto do imaginário católico que alguma vez já se tinha feito por aqui. E que continua, impunemente, em expansão enorme. Não são só variações do mesmo mas o mesmo sem variações. Quer dizer: o que se conseguiu em Fátima é uma aflição, uma espécie de horror, de campo de concentração do horror religioso, um inferno de mau gosto. O que, a meu ver, é muito grave». Tal como é e, pelos vistos, vai continuar a ser, Fátima é uma impostura e um negócio de milhões. Reclama a expulsão dos vendilhões e a purificação do templo. S. Lucas lembra que Jesus, «entrando no templo, começou a expulsar todos os que nele vendiam e compravam, dizendo-lhes: está escrito: a minha casa é casa de oração; mas vós fizestes dela covil de salteadores»!
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Além de republicano, socialista e laico, sou agnóstico. Não é o anti-clericalismo que me move. É a memória e a coerência, a dignidade e a decência. Além do respeito pela genuína fé dos outros. EPC dirá que é «aquela ponta de demagogia que faz o encanto» das minhas crónicas. Eu digo ao actual Presidente da República que, se avalizar a impostura, será reeleito com votos angariados em Fátima, mas não com o meu. «Est modus in rebus»!
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«Expresso» de 6 de Maio de 2000
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2 - A «COVA DOS LEÕES» E A COVA DA IRIA

NINGUÉM MELHOR do que alguns ex-esquerdistas, reconvertidos às delícias do capitalismo neoliberal de fachada cor-de-rosa, para produzir um discurso politicamente correcto, consensual, conformista e reaccionário acerca das «visões», «aparições» e «milagres» de Fátima. Reviam-se, dantes, na figura de Mao Zedong, como agora porventura se revêem na figura de Paulo de Tarso, não por acaso o mais radical dos arrependidos e verdadeiro fundador da Igreja Católica. Não admira que consigam ser mais papistas que o Papa. Mas espanta o descaramento com que agora pregam a moral e os «brandos costumes» democráticos aos pagãos. E surpreende o atrevimento com que chamam «sectários» a todos aqueles que nunca se arrependeram de exprimir livremente as suas opiniões, sem constrangimentos ditados pelo catecismo da Igreja ou por qualquer cartilha marxista-leninista.
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Convém que o zelo e a prosápia destes «cristãos novos» da política e do jornalismo verdadeiramente livres - que descobriram tarde a «sociedade aberta» e a «democracia pluralista» - não misturem alhos com bugalhos, nem procedam desonestamente a alguns amálgamas, como nos tempos (não muito recuados) em que pensavam e agiam segundo os dogmas maoístas compilados num «pequeno livro vermelho», execrável e pindérico. Não abusem do vosso arrependimento, por mais genuíno e sincero que ele seja! Como diz Horácio nas suas «Sátiras»: «est modus in rebus». Tudo deve ter a sua conta e medida.
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Serve isto para deixar bem claro que, o que eu critico não é o facto de um Presidente da República participar, enquanto tal, em celebrações religiosas que constituam manifestações públicas de fé em Deus (ou em qualquer outra divindade). O que eu critico é a sua participação numa cerimónia pública de consagração de uma rematada impostura obscurantista, que foi utilizada pelo Estado Novo e pela Igreja Católica portuguesa como arma de arremesso contra a democracia. É isto que está em causa e não a fé em Deus.
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Aliás, não percebo porque é que se condena com tanta desenvoltura, sem qualquer apelo nem agravo, as exacções e excessos cometidos pelos «jacobinos» durante a I República e se aceita tão prazenteiramente a consagração pública dessa escandalosa manipulação configurada nas «visões», «aparições» e «milagres» de Fátima. Para os «jacobinos», a «cova dos leões». Para os «beatos», a Cova da Iria. Há «neutralidade» nisto? Claro que não! Também não consigo lobrigar qual é a diferença essencial que existe entre a exploração da crendice popular levada a cabo pela IURD (que critiquei publicamente no momento oportuno) e esse autêntico negócio de milhões em que se transformou a exploração da crendice popular no Santuário de Fátima. Há «neutralidade» nisto? Claro que não! Mais me custa ainda perceber que alguém (que até nem é um ex-esquerdista arrependido) insulte desabridamente o primeiro-ministro, chamando-lhe «pedaço de carne baptizada» só por ele ser católico, e depois bata palmas, com o mesmo despudor, à presença oficial do Presidente da República na cerimónia de beatificação dos pastorinhos. Há «neutralidade» nisto? Claro que não! Há é um «forte aroma mariano» e um intenso cheiro a sacristia. Será medo do Inferno?
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Os próprios documentos publicados pela Igreja sobre o que se terá passado em Fátima, em 1917, estão cheios de contradições e mentiras mais ou menos pueris e revelam bem a dimensão a que chegou a escandalosa manipulação dos factos e das criancinhas. O propósito claro era o de propagar a fé pelo terror do Inferno, tal como nesse monumento ao horror e ao ridículo que foi a «Missão Abreviada», escrita pelo Padre Manuel José Gonçalves Couto (1819-1897), e muito em voga na época das «visões», «aparições» e «milagres». As descrições do que foi «visto» ou «apareceu» aos pastorinhos, designadamente durante o famoso «milagre do Sol», chega a ser hilariante. Em 13 de Outubro de 1917, Nossa Senhora chegou mesmo a enganar-se: previu que a Grande Guerra acabaria nesse dia e que os soldados portugueses regressariam em breve. Mas a guerra só acabou em 1918, não sem antes os soldados do Corpo Expedicionário Português, colocado na Flandres, terem sido massacrados, em 9 de Abril, na célebre Batalha de La Lys. Dir-me-ão que a verdadeira fé supera tais patetices. Acredito que sim. Mas o Estado não deve avalizar as patetices!
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«Expresso» de 13 de Maio de 2000

3 - O SENADOR, O PAPA, O ÍNDIO E O SEGREDO

O QUE O DEPUTADO PORTUGUÊS Luís Fazenda disse, na Assembleia da República, sobre o senador brasileiro António Carlos Magalhães, sem o mencionar expressamente, não foi nada de mais. Millôr Fernandes, que dispensa apresentações e não é propriamente militante do Bloco de Esquerda, foi mais explícito e contundente, há uma dúzia de anos: «Brasil - desse mato não sai coelho. Sai é jacaré, António Carlos Magalhães, cobra, José Sarney, hiena, Paulo Maluf...». Como Millôr também diz: «Política é a mais antiga das profissões». E António Carlos Magalhães é antiquíssimo na política brasileira. Deu-se bem com todos os regimes, inclusive a ditadura militar. Os brasileiros chamam-lhe «Toninho Malvadeza».
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Impressiona-me a benevolência e, até, a reverência com que vários políticos e jornalistas lusitanos costumam tratar alguns «dinossauros excelentíssimos» que sobrevivem às ditaduras e prosseguem as suas carreiras políticas em democracia com a mesma desenvoltura de uma faca a cortar manteiga. O senador António Carlos Magalhães desejava muito que seu filho viesse a suceder a Fernando Henrique Cardoso como Presidente do Brasil, mas o filho morreu. Generosamente, o Presidente Jorge Sampaio condecorou o filho, a título póstumo. Graças ao seu poder e a várias amnistias, «Toninho Malvadeza» passou incólume por entre a acusação de ter cometido vários crimes de abuso de poder e a suspeita de ter mandado assassinar adversários. Certo dia, porém, «respondeu com um simples dedo em riste quando um índio verdadeiro lhe apontou uma seta ao peito em pleno Senado». Isso bastou para que um magno comentador da nossa praça o tenha tratado agora como um político respeitável e tenha comparado a atitude do deputado Luís Fazenda à do índio que apontou a seta. Ora, se «um índio verdadeiro», hoje, já nem é gente, como qualificar então um falso «índio»?!
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Bajulação e temor reverencial, em relação aos poderosos deste mundo e do outro, parece que continuam a aflorar ciclicamente nas circunvoluções da política e do jornalismo lusitanos, 26 anos depois do 25 de Abril. A terceira visita de João Paulo II a Portugal foi reveladora. Fátima continua a pôr muita gente de rastos. A circunspecção é de rigor. Por cá, ainda se acredita na infalibilidade do Papa e são mais incontestáveis as «aparições» de «Nossa Senhora» na Cova da Iria do que as aparições do primeiro-ministro na Assembleia da República. É incómodo e inoportuno remexer na História e na Medicina quando estão em causa os «factos» que fundamentam o «milagre de Fátima» e a «beatificação dos pastorinhos». Os poucos que se atreveram a fazê-lo foram imediatamente acusados de «sectarismo». E só não foram tratados como réprobos e sacrílegos porque, felizmente, a Inquisição já não existe e a Comissão de Censura (ou de Exame Prévio) também não. Mas é bem verdade que, como escreveu Fernando Rosas, «entre as coberturas televisivas do passado 13 de Maio e as que se faziam no tempo do Estado Novo, só mudou a cor». Algo está errado - e é lamentável - quando, como observou Mário Mesquita, há jornalistas que se dispõem acriticamente a desempenhar o papel de «oficiantes» e os ecrãs de televisão se transformam em altares.
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Aliás, foi com enorme prudência, resignação e beatitude que por cá se recebeu a «revelação» da inefável «terceira parte do segredo de Fátima». Ao contrário do que sucedeu em Itália, onde foi notória a «desilusão dos intelectuais» e a «perplexidade dos meios eclesiásticos». Trata-se, de facto, de uma autêntica mistificação. Como escreveu Eugenio Scalfari no «La Repubblica», é estranho que «nos segredos revelados pela Bela Senhora aos pastorinhos não haja traça do nazismo» e apenas «se preveja o advento do comunismo». Terá sido por causa das «visões» de Pio XII, o Papa mais reaccionário deste século? A verdade é que, com este «processo de auto-santificação de João Paulo II» (que estará como que a pré-ordenar em vida «o percurso da sua própria beatificação»), a Igreja Católica corre o sério risco de fazer do Concílio Vaticano II letra morta, recuando perigosamente no tempo e na História e trocando o tão proclamado «ecumenismo» por um mais que proverbial «obscurantismo». Será que isso preocupa os intelectuais e os meios eclesiásticos lusitanos?
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«Expresso» de 20 de Maio de 2000