terça-feira, 14 de abril de 2009

Beatificações e canonizações

BEATITUDES REPUBLICANAS
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COM O BEATÍSSIMO APOIO do nosso ilustre Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, está a ser preparada a canonização do Condestável D. Nuno Álvares Pereira. O pretexto, por mais inverosímil que possa parecer, é a milagrosa cura de uma tal Dª. Guilhermina de Jesus, barbaramente atingida por salpicos de óleo no olho esquerdo enquanto fritava peixe. Tal cura ficou a dever-se, para espanto e vergonha dos oftalmologistas, à intercessão do espectro de D. Nuno de Santa Maria, apropriadamente invocado por Dª. Guilhermina de Jesus nas suas orações.
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Este piedoso capítulo da nossa história sacra, que suscita a beatitude republicana do Presidente Cavaco Silva, vem acrescentar-se a outro piedoso capítulo ocorrido há nove anos, com a beatificação dos pastorinhos de Fátima, que também mereceu o beatíssimo apoio do então Presidente da República, Jorge Sampaio, e do então Primeiro-Ministro, António Guterres.
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É, por isso, excelente o pretexto para convidar os leitores a repassarem os olhos por três crónicas escritas e publicadas no semanário EXPRESSO, no ano 2000, a propósito da beatificação dos pastorinhos de Fátima, a que ficou indelevelmente associada essa famosa dupla cor-de-rosa Sampaio-Guterres, orgulho de um socialismo piedoso e beato, a derrapar na «terceira via».
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Face a tais beatitudes, que constituem piedosos precedentes, é bastante difícil que alguém se atreva, nove anos depois, a lançar um salpico de óleo que seja sobre a beatitude do Presidente Cavaco Silva, sobretudo se D. Nuno de Santa Maria estiver alerta. É que Deus não dorme, o Condestável também não e, que se saiba, os pastorinhos de Fátima nunca fritaram peixe…
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14 de Abril de 2009
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1 - A BEATIFICAÇÃO DOS PASTORINHOS

COMO TÃO JUSTAMENTE assevera Eduardo Prado Coelho, ínclito guru da pós-modernidade lusitana, «Portugal vive hoje em diversos tempos simultâneos». Há mesmo tempos - e não os melhores - em que o país revisita os alvores do século XX, com reminiscências que se reportam ao século XIX. Será certamente esse o caso da lúgubre cerimónia de beatificação de dois pastorinhos, que o Papa João Paulo II nos vai proporcionar em Fátima, no próximo dia 13 de Maio, com a solícita presença do Presidente da República e a desvelada participação do Primeiro-Ministro, entre outros digníssimos representantes das forças vivas que dão sentido e cor - não púrpura, mas rosa - ao regime democrático em que vivemos.
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Fátima - seus videntes e seus milagres - é seguramente um daqueles domínios em que a pátria lusitana e alguns dos seus filhos continuam a demonstrar «uma criatividade assinalável e em muitos planos excepcional». Os pastorinhos viram o que EPC não viu. O «forte aroma mariano» que impregna as «aparições» de 1917 (mais de meia dúzia) rescende como o caldo de Tormes descrito pelo Eça em «A Cidade e as Serras». Que digo eu? Ainda é mais forte e aromático! A visão do Inferno, que Nossa Senhora terá revelado às pobres criancinhas, decalcada nessa espécie de catecismo que era a «Missão Abreviada», nada terá ficado a dever à obra-prima de Dante, embora seja mais prosaica. As «Memórias» da Irmã Lúcia, escritas com «obediência» e alguma «repugnância», cerca de três décadas depois das «aparições», fazem inveja ao melhor estilo de Camilo («A Freira no Subterrâneo»), ainda que tenha entrado um bispo na sopa cozinhada pelo cardeal Cerejeira e pelo Estado Novo.
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Mais criativo foi, porém, o «milagre» protagonizado por Maria Emília Santos - a que se levantou e andou depois de 20 anos sem se mexer - com base no qual se tornou possível a tão desejada beatificação dos pastorinhos. Para ele contribuíram decisivamente, não só o genuíno testemunho da «miraculada», mas também a desenvoltura de um tal padre Kondor, a erudição canónica do cardeal Ratzinger e a solicitude de uma família de felizardos - os médicos Felizardo Santos e Fernanda Brum, por acaso casados e especialistas em Medicina Interna - e, ainda, uma jovem recém-formada, por acaso filha dos médicos supracitados e especialista em Psiquiatria. Ao que parece, o «relatório» dos médicos Felizardo e Fernanda, ambos católicos e «servitas» no Santuário de Fátima, terá sido elaborado em tempo «record» - e o processo de beatificação terá ignorado (ou contornado) a legislação canónica, nomeadamente, o «Manual para Instruir os Processos de Canonização». Diz-se, até, que o testemunho da «miraculada» é um poço de contradições, confirmadas pelos seus irmãos e por um médico psiquiatra que a tratou e a pôs a andar muito antes do «milagre». Pelo menos foi isso que revelou o «Expresso» em 31 de Julho de 1999, numa notável investigação jornalística levada a cabo por Graça Rosendo e Mário Robalo, intitulada «Milagre com pés de barro». Mas isso que importa se, como é sabido, o Papa João Paulo II «sempre desejou este milagre»?!
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Em devido tempo, Frei Bento Domingues afirmou: «Conseguiu-se fazer de Fátima o maior concentrado do mau gosto do imaginário católico que alguma vez já se tinha feito por aqui. E que continua, impunemente, em expansão enorme. Não são só variações do mesmo mas o mesmo sem variações. Quer dizer: o que se conseguiu em Fátima é uma aflição, uma espécie de horror, de campo de concentração do horror religioso, um inferno de mau gosto. O que, a meu ver, é muito grave». Tal como é e, pelos vistos, vai continuar a ser, Fátima é uma impostura e um negócio de milhões. Reclama a expulsão dos vendilhões e a purificação do templo. S. Lucas lembra que Jesus, «entrando no templo, começou a expulsar todos os que nele vendiam e compravam, dizendo-lhes: está escrito: a minha casa é casa de oração; mas vós fizestes dela covil de salteadores»!
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Além de republicano, socialista e laico, sou agnóstico. Não é o anti-clericalismo que me move. É a memória e a coerência, a dignidade e a decência. Além do respeito pela genuína fé dos outros. EPC dirá que é «aquela ponta de demagogia que faz o encanto» das minhas crónicas. Eu digo ao actual Presidente da República que, se avalizar a impostura, será reeleito com votos angariados em Fátima, mas não com o meu. «Est modus in rebus»!
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«Expresso» de 6 de Maio de 2000
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2 - A «COVA DOS LEÕES» E A COVA DA IRIA

NINGUÉM MELHOR do que alguns ex-esquerdistas, reconvertidos às delícias do capitalismo neoliberal de fachada cor-de-rosa, para produzir um discurso politicamente correcto, consensual, conformista e reaccionário acerca das «visões», «aparições» e «milagres» de Fátima. Reviam-se, dantes, na figura de Mao Zedong, como agora porventura se revêem na figura de Paulo de Tarso, não por acaso o mais radical dos arrependidos e verdadeiro fundador da Igreja Católica. Não admira que consigam ser mais papistas que o Papa. Mas espanta o descaramento com que agora pregam a moral e os «brandos costumes» democráticos aos pagãos. E surpreende o atrevimento com que chamam «sectários» a todos aqueles que nunca se arrependeram de exprimir livremente as suas opiniões, sem constrangimentos ditados pelo catecismo da Igreja ou por qualquer cartilha marxista-leninista.
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Convém que o zelo e a prosápia destes «cristãos novos» da política e do jornalismo verdadeiramente livres - que descobriram tarde a «sociedade aberta» e a «democracia pluralista» - não misturem alhos com bugalhos, nem procedam desonestamente a alguns amálgamas, como nos tempos (não muito recuados) em que pensavam e agiam segundo os dogmas maoístas compilados num «pequeno livro vermelho», execrável e pindérico. Não abusem do vosso arrependimento, por mais genuíno e sincero que ele seja! Como diz Horácio nas suas «Sátiras»: «est modus in rebus». Tudo deve ter a sua conta e medida.
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Serve isto para deixar bem claro que, o que eu critico não é o facto de um Presidente da República participar, enquanto tal, em celebrações religiosas que constituam manifestações públicas de fé em Deus (ou em qualquer outra divindade). O que eu critico é a sua participação numa cerimónia pública de consagração de uma rematada impostura obscurantista, que foi utilizada pelo Estado Novo e pela Igreja Católica portuguesa como arma de arremesso contra a democracia. É isto que está em causa e não a fé em Deus.
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Aliás, não percebo porque é que se condena com tanta desenvoltura, sem qualquer apelo nem agravo, as exacções e excessos cometidos pelos «jacobinos» durante a I República e se aceita tão prazenteiramente a consagração pública dessa escandalosa manipulação configurada nas «visões», «aparições» e «milagres» de Fátima. Para os «jacobinos», a «cova dos leões». Para os «beatos», a Cova da Iria. Há «neutralidade» nisto? Claro que não! Também não consigo lobrigar qual é a diferença essencial que existe entre a exploração da crendice popular levada a cabo pela IURD (que critiquei publicamente no momento oportuno) e esse autêntico negócio de milhões em que se transformou a exploração da crendice popular no Santuário de Fátima. Há «neutralidade» nisto? Claro que não! Mais me custa ainda perceber que alguém (que até nem é um ex-esquerdista arrependido) insulte desabridamente o primeiro-ministro, chamando-lhe «pedaço de carne baptizada» só por ele ser católico, e depois bata palmas, com o mesmo despudor, à presença oficial do Presidente da República na cerimónia de beatificação dos pastorinhos. Há «neutralidade» nisto? Claro que não! Há é um «forte aroma mariano» e um intenso cheiro a sacristia. Será medo do Inferno?
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Os próprios documentos publicados pela Igreja sobre o que se terá passado em Fátima, em 1917, estão cheios de contradições e mentiras mais ou menos pueris e revelam bem a dimensão a que chegou a escandalosa manipulação dos factos e das criancinhas. O propósito claro era o de propagar a fé pelo terror do Inferno, tal como nesse monumento ao horror e ao ridículo que foi a «Missão Abreviada», escrita pelo Padre Manuel José Gonçalves Couto (1819-1897), e muito em voga na época das «visões», «aparições» e «milagres». As descrições do que foi «visto» ou «apareceu» aos pastorinhos, designadamente durante o famoso «milagre do Sol», chega a ser hilariante. Em 13 de Outubro de 1917, Nossa Senhora chegou mesmo a enganar-se: previu que a Grande Guerra acabaria nesse dia e que os soldados portugueses regressariam em breve. Mas a guerra só acabou em 1918, não sem antes os soldados do Corpo Expedicionário Português, colocado na Flandres, terem sido massacrados, em 9 de Abril, na célebre Batalha de La Lys. Dir-me-ão que a verdadeira fé supera tais patetices. Acredito que sim. Mas o Estado não deve avalizar as patetices!
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«Expresso» de 13 de Maio de 2000

3 - O SENADOR, O PAPA, O ÍNDIO E O SEGREDO

O QUE O DEPUTADO PORTUGUÊS Luís Fazenda disse, na Assembleia da República, sobre o senador brasileiro António Carlos Magalhães, sem o mencionar expressamente, não foi nada de mais. Millôr Fernandes, que dispensa apresentações e não é propriamente militante do Bloco de Esquerda, foi mais explícito e contundente, há uma dúzia de anos: «Brasil - desse mato não sai coelho. Sai é jacaré, António Carlos Magalhães, cobra, José Sarney, hiena, Paulo Maluf...». Como Millôr também diz: «Política é a mais antiga das profissões». E António Carlos Magalhães é antiquíssimo na política brasileira. Deu-se bem com todos os regimes, inclusive a ditadura militar. Os brasileiros chamam-lhe «Toninho Malvadeza».
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Impressiona-me a benevolência e, até, a reverência com que vários políticos e jornalistas lusitanos costumam tratar alguns «dinossauros excelentíssimos» que sobrevivem às ditaduras e prosseguem as suas carreiras políticas em democracia com a mesma desenvoltura de uma faca a cortar manteiga. O senador António Carlos Magalhães desejava muito que seu filho viesse a suceder a Fernando Henrique Cardoso como Presidente do Brasil, mas o filho morreu. Generosamente, o Presidente Jorge Sampaio condecorou o filho, a título póstumo. Graças ao seu poder e a várias amnistias, «Toninho Malvadeza» passou incólume por entre a acusação de ter cometido vários crimes de abuso de poder e a suspeita de ter mandado assassinar adversários. Certo dia, porém, «respondeu com um simples dedo em riste quando um índio verdadeiro lhe apontou uma seta ao peito em pleno Senado». Isso bastou para que um magno comentador da nossa praça o tenha tratado agora como um político respeitável e tenha comparado a atitude do deputado Luís Fazenda à do índio que apontou a seta. Ora, se «um índio verdadeiro», hoje, já nem é gente, como qualificar então um falso «índio»?!
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Bajulação e temor reverencial, em relação aos poderosos deste mundo e do outro, parece que continuam a aflorar ciclicamente nas circunvoluções da política e do jornalismo lusitanos, 26 anos depois do 25 de Abril. A terceira visita de João Paulo II a Portugal foi reveladora. Fátima continua a pôr muita gente de rastos. A circunspecção é de rigor. Por cá, ainda se acredita na infalibilidade do Papa e são mais incontestáveis as «aparições» de «Nossa Senhora» na Cova da Iria do que as aparições do primeiro-ministro na Assembleia da República. É incómodo e inoportuno remexer na História e na Medicina quando estão em causa os «factos» que fundamentam o «milagre de Fátima» e a «beatificação dos pastorinhos». Os poucos que se atreveram a fazê-lo foram imediatamente acusados de «sectarismo». E só não foram tratados como réprobos e sacrílegos porque, felizmente, a Inquisição já não existe e a Comissão de Censura (ou de Exame Prévio) também não. Mas é bem verdade que, como escreveu Fernando Rosas, «entre as coberturas televisivas do passado 13 de Maio e as que se faziam no tempo do Estado Novo, só mudou a cor». Algo está errado - e é lamentável - quando, como observou Mário Mesquita, há jornalistas que se dispõem acriticamente a desempenhar o papel de «oficiantes» e os ecrãs de televisão se transformam em altares.
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Aliás, foi com enorme prudência, resignação e beatitude que por cá se recebeu a «revelação» da inefável «terceira parte do segredo de Fátima». Ao contrário do que sucedeu em Itália, onde foi notória a «desilusão dos intelectuais» e a «perplexidade dos meios eclesiásticos». Trata-se, de facto, de uma autêntica mistificação. Como escreveu Eugenio Scalfari no «La Repubblica», é estranho que «nos segredos revelados pela Bela Senhora aos pastorinhos não haja traça do nazismo» e apenas «se preveja o advento do comunismo». Terá sido por causa das «visões» de Pio XII, o Papa mais reaccionário deste século? A verdade é que, com este «processo de auto-santificação de João Paulo II» (que estará como que a pré-ordenar em vida «o percurso da sua própria beatificação»), a Igreja Católica corre o sério risco de fazer do Concílio Vaticano II letra morta, recuando perigosamente no tempo e na História e trocando o tão proclamado «ecumenismo» por um mais que proverbial «obscurantismo». Será que isso preocupa os intelectuais e os meios eclesiásticos lusitanos?
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«Expresso» de 20 de Maio de 2000

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