NÃO É CÓMODO SER DE ESQUERDA
O EURODEPUTADO e famoso ex-ministro da Saúde de um governo do
PS, António Correia de Campos, escreveu no Público,
em 21 de Janeiro passado, que «o povo não come ideologia». Claro que não! Tal
como não come música, literatura, artes plásticas, cinema e muitas outras
coisas consideradas fúteis pelos economicistas de serviço. Ao contrário dos hamburgers
da McDonald’s, por exemplo… Ou dos bifes que a drª Isabel Jonet acusou o povo
de comer todos os dias, para ruína da pátria e da república… E quem não se
recorda daquele ministro de Berlusconi que se atreveu a contrariar jornalistas
que insistiam em falar-lhe de Cultura, dizendo que «a ‘Divina Comédia’ não
serve para comer porque com ela não podemos fazer sanduíches»?!
«O povo não come
ideologia» é uma frase muito batida, normalmente utilizada pela direita ou por
políticos oriundos da extrema-esquerda sempre em trânsito para a direita. É
característica do pragmatismo sem princípios que tomou conta dos partidos socialistas,
social-democratas e trabalhistas membros da Internacional Socialista, na última
década do século passado, a partir da fracassada Terceira Via teorizada por
Anthony Giddens e adoptada por Tony Blair, Gerhard Schroeder, António Guterres
e «tutti quanti» por essa Europa fora. No fundo, não passou de uma conversão
encapotada às delícias do neoliberalismo. Foi uma abdicação ideológica que os
tornou comparsas da direita e reforçou o «rotativismo» no poder, com as
mordomias que ele confere e os tachos que permite distribuir.
«Ser de esquerda não
tem necessariamente de ser cómodo. Quase nunca é» - dizia João Martins Pereira,
uma referência ideológica para muitos da minha geração. E o que é uma
ideologia? Para não complicar as coisas, recorro a um dicionário bem conhecido,
o da Porto Editora, que reza assim sobre ideologia: «1. Sistema de ideias,
valores e princípios que definem uma determinada visão do mundo, fundamentando
e orientando a forma de agir de uma pessoa ou de um grupo social (partido político,
grupo religioso, etc.) 2. Estudo da origem e da formação das ideias».
Claro que há ideologias
boas e ideologias más, democráticas e totalitárias, pluralistas e intolerantes.
Mas, ao contrário do que costuma afirmar a direita (sempre demagógica até ao
tutano), não me parece que, em si mesmo, o conceito de ideologia seja um papão.
Nem uma sanduíche de Dante. Nem um bife à Isabel Jonet. Aliás, só um «prodígio
sem ossos» («boneless wonder», como chamava Churchill a alguns dos seus
adversários políticos) é que pode singrar na política sem qualquer quadro de
valores e princípios, sem uma visão do mundo que lhe sirva de referência,
caminhando aos ziguezagues, recorrendo à navegação de cabotagem por
incapacidade de se fazer ao largo e de correr riscos, definindo novos rumos e
tentando mudar o estado das coisas para que os cidadãos consigam viver melhor,
numa sociedade menos desigual, mais justa e mais solidária.
Um «prodígio sem ossos»
não faz grandes ondas, provoca apenas uma ligeira ondulação enquanto aguarda
tranquilamente a sua vez para regressar ao poder. A Internacional Socialista
está cheia de «prodígios sem ossos» ansiosos por agradar a plutocratas,
banqueiros, grandes empresas e seus accionistas, gestores e patrões. A
Internacional Socialista está em crise profunda porque os partidos que dela
fazem parte cortaram as suas raízes históricas, abdicaram de ter um pensamento
próprio, autónomo, original, e julgaram erradamente que se renovavam
catrapiscando ideias e propostas dos seus adversários da direita neoliberal e
neoconservadora. Os resultados estão à vista. De facto, não é nada cómodo ser
de esquerda…
«Público»,
6 Fev 13