quinta-feira, 17 de julho de 2008

Bulgakov e Estaline - o Médico e o Monstro revisitados

«O visitante pousou com simpatia a mão no ombro do pobre poeta e disse:
- Infeliz poeta! Mas, meu caro, a culpa é toda sua. Não devia tratá-lo de modo tão atrevido e até mesmo impertinente. E agora está a pagá-las. E ainda devia estar agradecido por tudo isso lhe ter saído relativamente barato»

Do capítulo 13 de Margarita e o Mestre, de Mikhail Bulgakov

CONHECI Mikhail Afanassievitch Bulgakov – de quem, até então, apenas ouvira falar – no dia 11 de Junho de 1988, depois de uma das minhas habituais e nem sempre bem sucedidas incursões à Feira do Livro, no Parque Eduardo VII, em busca de pérolas e pechinchas da literatura, portuguesa e estrangeira.
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Nesse dia fui bem sucedido: levei para casa um livro de bolso da Colecção Mocho, da antiga editorial Estúdios Cor, contendo nada mais, nada menos do que a tradução portuguesa da novela Coração de Cão, de Mikhail Bulgakov. Ainda não tinha lido o romance Margarita e o Mestre e, por isso mesmo, não encontrei Satanás no Lago do Patriarca, em Moscovo, como aconteceu ao infeliz poeta Ivan Nikolaevitch Ponirov, aliás Bezdomni (aquele que não tem casa), imediatamente internado numa clínica psiquiátrica depois do reboliço que provocou na Casa da Literatura de Massas (MASSOLIT). Mas encontrei em minha casa, no alto do Restelo, com vista para o Hospital de S. Francisco Xavier, o inefável Sharik (Bolinha), um cão vadio que é transformado – por via de vários transplantes, enxertos e manipulações genéticas – num homúnculo chamado Polygraf Poligrafovitch Sharikov: a mais arrogante, perfeita e acabada besta quadrada que qualquer burocracia, sobretudo a soviética, poderia alguma vez ter produzido, com a prestimosa ajuda e inspiração da scientific society americana. E aquilo que, francamente, posso afirmar é que o prazer e o espanto que a leitura desta extraordinária novela (escrita em 1925) provocou em mim só são comparáveis ao deslumbramento que viria a causar-me, no Natal de 1991, a leitura do romance Margarita e o Mestre, escrito nos anos 1930, durante a última década da vida de Mikhail Bulgakov.
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Não por acaso, as duas obras foram mantidas na clandestinidade durante várias décadas. O manuscrito da novela Coração de Cão – que constitui, com duas outras novelas (A Feitiçaria e Os Ovos Fatídicos), uma espécie de trilogia – foi confiscado em 1926 pelas autoridades soviéticas, juntamente com um Diário Íntimo (1922-1925) do escritor, que este nem sequer destinava à publicação (quando lho devolveram, queimou-o, mas os serviços secretos soviéticos guardaram cópias dactilografadas). A novela Coração de Cão só será conhecida no Ocidente em 1968, através da sua publicação, em Londres, num Samizdat in Student. Quanto ao romance Margarita e o Mestre, a obra-prima absoluta de Bulgakov, foi escrito praticamente em segredo, sempre na esperança de um dia vir a ser publicado. Religiosamente guardado pela terceira mulher e viúva do escritor, Elena Serguéevna, será ela a promover a sua publicação, em 1966, mais de um quarto de século depois da morte de Bulgakov (obviamente ainda com muitos cortes de censura na sua edição soviética).
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Bulgakov é, sem dúvida, uma das mais exemplares figuras intelectuais e um dos maiores escritores que o século XX conheceu. Porventura tão grande como os maiores escritores russos do século XIX, que ele tão bem conhecia e admirava: Puschkine, Gogol, Dostoievski, Turgueniev, Tchekov e Tolstoi. Puschkine e Gogol constituíam, aliás, juntamente com Moliére, a tríade de mestres e exemplos que Bulgakov reclamava para si, para a sua obra e para a sua vida, considerando-os seus heróis – porque, como ele, desafiaram os poderes estabelecidos e a hipocrisia social reinante, combateram os preconceitos, a ignorância e o obscurantismo, foram vítimas da incompreensão, do silêncio e da censura. E escreveram obras geniais.
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Bulgakov nasceu em 15 de Maio de 1891, entre fachadas barrocas, monstros e quimeras, igrejas e palácios, ilusões e mistérios, na cidade de Kiev, «uma cidade de beleza, a mãe das cidades russas», como ele próprio escreveu. Foi médico, soldado, jornalista, publicista, actor, encenador, tradutor, autor de libretos, biógrafo, novelista, dramaturgo e romancista. Também foi melómano, morfinómano, espírita, boémio e jogador. E viu tudo aquilo que não queria ver. Testemunhou e sofreu os horrores da Grande Guerra, da Revolução Russa e da Guerra Civil entre Vermelhos e Brancos.
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No curto espaço de um ano, entre Setembro de 1916 e Setembro de 1917, mobilizado como médico militar e colocado numa aldeia da região de Smolensk, o doutor Bulgakov, com a ajuda da primeira mulher, Tatiana, enfermeira improvisada, tratará 15.381 doentes, praticando amputações, traqueotomias e operações de obstetrícia – conforme atesta um documento oficial. E torna-se morfinómano, na sequência de uma insuportável alergia contraída ao tratar de uma criança cuja vida consegue salvar. Transferido, depois, para a pequena cidade de Viazma, dedica-se ao tratamento de doenças infecciosas e venéreas. Mas Bulgakov quer ser escritor e, dentro de poucos anos, abandonará definitivamente a medicina para se dedicar inteiramente à escrita. Não sem antes passar dois anos no Cáucaso, entre o Outono de 1919 e o Outono de 1921, mobilizado outra vez como médico, ao que parece contra a sua vontade, pelo Exército Branco de Denikine, em cujas fileiras contrai o tifo e chega a estar à beira da morte.
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Depois de tentar, em vão, emigrar para o Ocidente, Bulgakov instala-se em Moscovo a partir de Setembro de 1921. Já são diversos os textos que escreveu, e continua a escrever, entre os quais as Narrativas de um Jovem Médico. Mas será a partir do seu primeiro romance, A Guarda Branca, escrito entre 1923 e 1925, que ficarão traçados, não apenas o seu destino como escritor, mas o resto da sua vida. O fascínio pelo teatro fará dele um notável dramaturgo. Os Dias dos Turbin, adaptação teatral do seu romance A Guarda Branca, é a história da desagregação de uma grande família de Kiev, que decorre durante os anos de grande agitação e luta sangrenta entre nacionalistas ucranianos e latifundiários, russófilos e germanófilos, até à derrota final do Exército Branco frente aos Bolcheviques. A peça é estreada em 5 de Outubro de 1926, no Teatro de Arte de Moscovo, e irá ter mais de oitocentas representações.
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O público aplaude com enorme entusiasmo. A crítica oficial e a oficiosa, designadamente a Associação dos Escritores Proletários (RAPP), ataca Bulgakov com extrema violência, e até Maiakovski, o poeta vermelho e irmão inimigo, chega a propor, nos jornais, uma «expedição punitiva» de jovens comunistas durante uma representação da peça. Mas Estaline desempata, com requintes de hipocrisia e de cinismo: «A peça é mais útil do que prejudicial. Não se esqueçam de que a impressão dominante que ela transmite aos espectadores é favorável aos bolcheviques. Se até pessoas como os Turbin se sentem obrigadas a depor as armas, a submeter-se à vontade popular e a reconhecer o fracasso total da sua empresa, isso significa que os bolcheviques são invencíveis».
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É o primeiro confronto, à distância, entre o Médico e o Monstro. Há muito que Bulgakov não tem ilusões sobre o futuro do bolchevismo. Tal como em Outubro de 1923 conseguirá prever, no seu Diário Íntimo, a ascensão de Hitler ao poder e a sua transformação num novo Kaiser – o que é extraordinário a uma tal distância –, já em 1919 ele previra, num texto intitulado Perspectivas de Futuro (em que ataca a «figura maléfica de Trotsky»), que os países ocidentais iriam progredir e desenvolver-se, ao passo que «nós, nós vamos acumular o atraso…». E pergunta: «Quem irá ver os dias radiosos? Nós? Oh, não! Talvez os nossos filhos, talvez só os nossos netos, porque o diapasão da história é bem amplo e ela se conta tão facilmente em decénios como se conta em anos». Palavras proféticas, escritas com sete décadas de antecedência.
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Apesar do comentário aparentemente favorável de Estaline, também a peça Os Dias dos Turbin acabará por sair de cena, tal como outras peças de Bulgakov – O Apartamento de Zoika, A Ilha Púrpura, etc. – imediatamente retiradas dos repertórios ou pura e simplesmente proibidas. Para Bulgakov, vai começar «o exílio no interior» e sobre ele irão abater-se, inexoravelmente, o silêncio, o ostracismo e a censura, que hão-de acompanhá-lo até ao fim da sua vida.
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Mas Bulgakov ainda vai interpor um último recurso. Vai escrever uma carta a Estaline, de uma dignidade e audácia extraordinárias, que tocam as raias do atrevimento e da impertinência, porventura, até, da ingenuidade. É um documento verdadeiramente surpreendente, que dá bem a medida da grandeza do homem e da sua probidade intelectual. Diz ele: «Provo, apoiado em documentos, que a generalidade da imprensa soviética e, juntamente com ela, todos os organismos incumbidos do controlo dos repertórios, se empenharam em demonstrar, univocamente e com uma veemência pouco comum, que, durante todos estes anos em que desenvolvi o meu trabalho literário, as obras de Mikhail Bulgakov não podem existir na URSS. Pelo meu lado, declaro que a imprensa soviética tem toda a razão».
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É este o núcleo central da sua argumentação, a partir do qual Bulgakov solicita ao Governo soviético que o autorize a «abandonar, no mais breve prazo possível, o território da URSS», acompanhado pela sua segunda mulher, Liubova Euguénievna. Bulgakov vai ainda mais longe e cita uma das muitas críticas que lhe foram dirigidas: «Na URSS, todo o autor satírico atenta contra o regime soviético. Serei eu pensável na URSS?». A propósito dos conselhos com que alguns o prodigalizaram, sugerindo que escrevesse uma «peça comunista», afirma: «Quanto a escrever uma peça comunista, nem sequer o tentei, sabendo de antemão que sou perfeitamente incapaz de o fazer».
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Bulgakov proclama, também, o seu dever de «lutar contra a censura» e de apelar à «liberdade de expressão», mas os parágrafos mais impressionantes são aqueles em que antevê a possibilidade de recusarem o seu pedido: «Peço-lhes que compreendam que, se me colocarem na impossibilidade de escrever, para mim é o mesmo que ser enterrado vivo». E, finalmente: «Se for condenado a calar-me na União Soviética, durante o resto dos meus dias, solicito ao Governo que me dê um emprego na minha especialidade, afectando-me a um teatro como encenador titular (…). Se não me nomearem encenador, solicito, em derradeira instância, um emprego de figurante. E se não puder ser figurante, que me dêem um trabalho de servente».
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A carta tem a data de 28 de Março de 1930. O que irá acontecer? Verifica-se um conjunto de circunstâncias imprevisíveis. Maiakovski suicida-se no dia 13 de Abril, segunda-feira da Semana Santa. E o impensável ocorre na sexta-feira Santa, dia 17 de Abril: Estaline telefona pessoalmente a Bulgakov, que é colhido de surpresa e nem quer acreditar. Estaline não perde tempo, acusa a recepção da carta, promete «uma resposta favorável» e pergunta a Bulgakov: «Você quer partir para o estrangeiro, não é verdade? Está assim tão farto de nós?». Bulgakov acaba por contemporizar e dá a resposta fatal: «Nestes últimos tempos, pensei longamente na seguinte questão: pode um escritor russo viver fora da sua pátria? E parece-me que não». Resposta imediata de Estaline: «Tem toda a razão. Sou da mesma opinião». E garante a Bulgakov o emprego que este tinha solicitado: encenador (não titular, mas adjunto) do Teatro de Arte de Moscovo.
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Bulgakov não mais sairá da URSS. Já não irá a Paris inclinar-se perante a estátua de um dos seus mestres – Moliére – como tanto desejava. A peça que escreveu sobre o grande dramaturgo francês também é recusada pelas autoridades, como o serão todas as outras, sejam originais ou adaptações, libretos para óperas ou projectos de encenações. Apenas lhe permitirão ser actor - e Bulgakov também é um excelente actor. Tudo o que, a partir daí, vai escrever só será lido aos serões, numa roda de amigos. Mas é nessa década terrível, a última década da sua vida, que vai entregar-se, de alma e coração, até ao esgotamento físico e à doença, à escrita da sua obra-prima: o romance Margarita e o Mestre.
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Ainda escreverá a Estaline uma segunda carta, em 10 de Junho de 1934, pedindo autorização para efectuar uma viagem de repouso ao estrangeiro, por um período de apenas dois meses. Desta vez, porém, já não obterá qualquer resposta. O «terror» já se instalara e os «processos de Moscovo» estavam em marcha, sucedendo-se as prisões, as «confissões», as deportações, os «suicídios» e as execuções sumárias.
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Numa derradeira tentativa de sobrevivência, Bulgakov ainda escreve uma peça sobre a juventude de Estaline, intitulada Batum, em que o tirano é retratado como um ex-seminarista exaltado que se transforma em combatente revolucionário. Precisamente o contrário do que convinha ao «culto da personalidade» do chefe todo-poderoso, isto é, à imagem de Estaline como «grande estadista», senhor de todas as Rússias e afável «Pai dos Povos».
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Os primeiros sintomas da doença que há-de matar Bulgakov e que já matara seu pai - a nefroesclerose - manifestam-se em Setembro de 1939, quando o mundo mergulha na II Guerra Mundial e Estaline vai atingir o zénite do seu poder totalitário. Bulgakov ainda pensa em suicidar-se, mas não tem uma pistola. Está quase cego e só suporta a luz das velas. Na última foto que oferece a sua mulher, Elena, em 11 de Fevereiro de 1940, escreve: «Não fiques triste por os meus olhos estarem tapados por óculos escuros. Eles sempre tiveram o dom de distinguir a verdade e a mentira».
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Mikhail Bulgakov morre no dia 10 de Março de 1940. O seu corpo repousa no cemitério de Novodevitchi, reservado ao Teatro de Arte de Moscovo, debaixo de uma enorme pedra de granito negro do Cáucaso, que fora colocada no primeiro túmulo de Nicolau Gogol, no cemitério de Danilov. Aliás, desde 1931 que os restos mortais de Gogol também já estavam depositados no cemitério de Novodevitchi…
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Meio século depois da sua morte, a obra de Bulgakov aí está, surpreendente e viva, em todo o seu esplendor, vencendo inapelavelmente o derradeiro confronto com a «obra» de Estaline. É uma obra desigual, certamente, mas genial em múltiplos aspectos. Caracterizada pela prodigiosa imaginação de um homem que quis ser livre e diferente. E não há congresso algum da imaginação, sugerido por intelectuais orgânicos de qualquer regime, em qualquer época e em qualquer parte do mundo, que possa sequer abeirar-se, quanto mais substituir-se, à imaginação de um criador autêntico, ética e esteticamente íntegro, como o foi Bulgakov. Porque a verdadeira imaginação não se compadece com exorcismos colectivos, não se organiza nem se planeia, não é uma moda efémera nem um compromisso político. É avessa aos compadrios. É o contrário da burocratização.
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Este texto foi publicado no suplemento de Cultura do Diário de Notícias, em 12 de Novembro de 1992, e no livro intitulado «Janela Indiscreta», publicado por Alfredo Barroso e editado pela Quetzal em 1994.