sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

«NÃO HÁ ALTERNATIVA – TRINTA ANOS DE PROPAGANDA ECONÓMICA» – DE BERTRAND ROTHÉ E GÉRARD MORDILLAT

(Apresentação do livro)

1.
COMEÇO por uma constatação: o capitalismo desregulado e sem controlo – que tem prevalecido no mundo durante as últimas três décadas (1980-1990-2000), e que nos mergulhou nesta crise brutal cujo fim não está à vista – tornou-se incompatível com a democracia.
Porque a democracia não é apenas um princípio político – a regra da maioria. É também um princípio social – a constante procura da igualdade de condições.
Ora, aquilo a que hoje assistimos em todo o mundo é ao preocupante aumento das desigualdades e à escandalosa concentração da riqueza nas mãos de uma ínfima minoria de ultra-privilegiados.

2.
ESTE magnífico livro panfleto contra a doutrina neoliberal explica-nos, com bastante clareza e poder de síntese, como tudo começou, há 30 anos – com Margaret Thatcher (na Grã-Bretanha, desde 1979) e com Ronald Reagan (nos EUA, desde 1981).
E identifica, também, as duas principais fontes da doutrina, que são:
– Friederich von Hayek (1899-1992), o ‘deus’ criador da ‘religião’ neoliberal e fundador da respectiva ‘igreja’ (a pouco conhecida Société du Mont-Pélérin criada na Suíça em 10 de Abril de 1947), e também autor de um best-seller anticomunista – mas, sobretudo, contra o Estado-Providência – intitulado «O CAMINHO DA SERVIDÃO» (que mereceu uma versão abreviada distribuída em 600 mil exemplares pela Reader’s Digest, em 1947);
– e Milton Friedman (1912-2006) (também membro da Société du Mont-Pélérin), ‘papa’ da ‘igreja’ neoliberal e autor do livro «CAPITALISM AND FREEDOM» (publicado em 1962). Foi ele quem forjou os conceitos fundamentais da doutrina e organizou a famosa Escola de Chicago (monetarista) – que se tornaria um viveiro do neoliberalismo, e serviria de base às políticas económicas de Reagan e Thatcher.

3.
PARA Hayek e para Friedman, tal como para os seus discípulos e seguidores: «não há alternativa ao capitalismo»; pior ainda: «não há alternativa ao (neo)liberalismo».
Ora, o título principal deste livro – «NÃO HÁ ALTERNATIVA» – é precisamente a tradução de uma famosa frase proferida por Margaret Thatcher, «There Is No Alternative», cujo acrónimo é TINA.
Como afirmam os autores do livro – o economista Bertrand ROTHÉ e o escritor e cineasta Gérad MORDILLAT – «TINA é a arma ideológica inventada pela minoria neoliberal para impor ao mundo as suas opções. Ao repetir que ‘não há alternativa’, o novo establishment transforma o jogo político num ultimato permanente. Ponto final na reflexão. Ponto final no debate democrático. Doravante, a mensagem é a seguinte: ‘Votem em nós ou irão desaparecer’. É um simplismo, um pensamento único».
«A contra-revolução neoliberal é essencialmente antidemocrática» – já o afirmou Paul Krugman. «De facto, nenhuma maioria de eleitores desejaria reduzir a cobertura social que protege a generalidade dos cidadãos. Nunca. O único meio de forçar a mão do povo é levá-lo a acreditar que não há alternativa» - acrescentam ROTHÉ e MORDILLAT.

4.
NA SUA obra «CAPITALISM AND FREEDOM», Milton Friedman explica-nos que, como a obtenção do lucro é a essência da democracia neoliberal, todo o governo que conduza políticas que contrariem o mercado está a portar-se de forma antidemocrática – sendo irrelevante o apoio de que goze por parte de uma população esclarecida.
Foi esta visão absolutamente perversa da democracia que fez com que ele próprio e Friederich Hayek não levantassem quaisquer objecções ao golpe de Estado do general Augusto Pinochet, no Chile – que depôs, em 1973, o governo democraticamente eleito do presidente Salvador Allende, – dado que este estava a interferir com o controlo dos negócios da sociedade chilena.
Friederich Hayek foi mesmo ao ponto de declarar, em defesa do indefensável Pinochet, o seguinte: «Pessoalmente, prefiro uma ditadura liberal a um governo democrático completamente alheado do liberalismo».
Foi essa «ditadura liberal», brutal e selvagem, que os Chicago boys de Milton Friedman ajudaram a sustentar durante 15 anos, transformando-a num autêntico laboratório experimental das políticas neoliberais preconizadas e ensinadas por Hayek e Friedman.

5.
ENTRETANTO, ficou a saber-se há pouco tempo que Friedrich Hayek, o ‘profeta’ venerado pelo general Pinochet e por Margaret Thatcher, não quis visitar os EUA em 1973 – a convite do milionário norte-americano Charles Koch, um dos pilares do desmantelamento do Estado-Providência – por ter medo de perder os seus direitos à Segurança Social no seu país, a Áustria.
Hayek – que nos seus discursos e palestras proclamava que a Segurança Social é «essencialmente um absurdo» que urge banir – explica com todo o detalhe, na correspondência que trocou com Charles Koch, os benefícios sociais a que tinha direito, e que não queria arriscar-se a perder.
Para além da hipocrisia pessoal, o que aqui se manifesta é a hipocrisia de um discurso que consiste em fazer crer às pessoas que se pretende proteger a sua responsabilidade e a sua liberdade de escolha – quando elas são despojadas dos seus direitos sociais e do seu dinheiro para encher os bolsos da ínfima minoria dos mais ricos do planeta.

6.
TAMBÉM se tornou patente que o sistema neoliberal gera um importante e inevitável subproduto: uma cidadania despolitizada, caracterizada pela apatia e pelo cinismo.
O neoliberalismo é o primeiro e imediato inimigo de uma genuína democracia participativa. Claro que actua melhor quando existe uma democracia eleitoral formal, mas precisa que a população seja desviada das fontes de informação e dos debates públicos que a habilitem a formar opinião e a intervir nos processos de tomada de decisão.
A partir da noção crucial de «mercado über alles», a democracia neoliberal cria centros comerciais em vez de espaços comunitários e produz consumidores em vez de cidadãos. E o resultado prático é uma sociedade atomizada, constituída por indivíduos desenraizados que se sentem desmoralizados e socialmente impotentes.

7.
NÃO QUERO roubar aos presentes o prazer da leitura deste livro revelador, mas vale a pena evocar alguns factos e números que marcam a experiência do neoliberalismo – doutrina responsável por aquilo a que costumo chamar «ditadura financeira de fachada democrática».
Antes de mais, um exemplo de retrocesso, que os autores do livro registam logo nas primeiras páginas:
– Durante as três décadas que se seguiram à II Guerra Mundial (1950-1960-1970), os patrões das grandes empresas recebiam entre 40 a 50 vezes mais do que o salário de um operário, ao passo que hoje recebem entre 400 a 500 vezes mais (historiadores americanos chamaram a esse fenómeno «the great compression» («a grande compressão») por analogia com «a grande depressão»).
Depois, o balanço dos 15 anos de governação Margaret Thatcher (1979-1990), está longe de ser famoso:
– Com a «Dama de Ferro», o egoísmo voltou a ser uma virtude, reflexo e prolongamento das privatizações, da maximização dos lucros, das inúmeras reestruturações, do desemprego, da destruição do poder dos sindicatos, do desenvolvimento do offshore, da desregulamentação, da desindustrialização, da multiplicação de serviços de todo o tipo e da criação de um imposto regressivo (concebido de forma a que, os muitos que têm rendimentos mais baixos, paguem proporcionalmente mais do que os poucos que têm rendimentos mais altos);
– O resultado desta política foi um brutal aumento das desigualdades e um crescente endividamento das classes médias (iludidas pela facilidade de acesso ao crédito e à propriedade imobiliária e mobiliária);
– Além disso, o desemprego triplicou, atingindo, em meados de 1981, o record de 3 milhões de desempregados (eram menos de 1 milhão quando Thatcher tomou posse, em 1979);
– E a inflação duplicou entre 1979 e 1981 (passando de 10 % para cerca de 20 %, e continuando nos dois dígitos no final da década de 1980), apesar de Thatcher ter imposto uma política de austeridade, com o objectivo prioritário de reduzir a inflação, e que conduziu o país a uma grave recessão.
Também o resultado das políticas de Reagan – que ficaram a ser conhecidas pela expressão «Reaganomics» – está longe de ser famoso:
– Os quatro pontos cardiais da «Reaganomics» eram: diminuir as despesas públicas («O Estado não faz parte da solução, faz parte do problema», dizia Reagan); baixar os impostos (dos mais ricos); desregulamentar (a actividade económica e financeira); acabar com a inflação;
– Mas o maior dano que Ronald Reagan causou foi no défice orçamental, ao retirar biliões de dólares do erário público para financiar a famosa «guerra das estrelas». O anticomunismo visceral de Reagan sobrepôs-se, neste caso, às suas tão proclamadas convicções neoliberais, afirmando, contra todas as evidências, que: «É possível baixar os impostos, aumentar as despesas do Pentágono e equilibrar o orçamento». Aumentou maciçamente o orçamento da Defesa, mas deu origem a um défice orçamental abissal (que se tornaria estratosférico com George W. Bush, na década de 2000).

8.
A PARTIR do final da década de 1970, assistimos a uma espécie de «revolução silenciosa» que criou «uma nova classe de ultra-privilegiados, ‘que enriquecem mesmo enquanto estão a dormir’» (no espaço de 40 anos, por exemplo, cada 10 euros investidos em acções foram multiplicados por 45).
Simultaneamente, «sem grandes conflitos, sem aparente violência, por vezes até com o assentimento popular, os dirigentes económicos tomaram o poder» e remeteram os políticos para um plano secundário. Esta vitória do capitalismo ultraliberal teve por preço um aumento brutal das desigualdades, alargando o fosso que separa a ínfima minoria de ultra-privilegiados da esmagadora maioria das classes médias e das classes populares.
Aumentaram os rendimentos das elites, a rentabilidade das empresas, assim como os rendimentos e patrimónios dos accionistas, beneficiados pela nova regra de pelo menos 15 % de rentabilidade dos investimentos.
Com esta nova regra, inverteram-se as relações de força entre o capital e o trabalho, entre os accionistas e os assalariados. Passou a prevalecer o partido do dinheiro, apesar de ser ultraminoritário. Em 2005, cerca de 300 milhões de accionistas – 90 % dos quais concentrados na América do Norte, na Europa Ocidental e no Japão – controlavam a capitalização bolsista mundial.

9.
O NEOLIBERALISMO acabou por instalar progressivamente na sociedade uma «economia do medo» e um «estado de excepção permanente» – através da propaganda a cargo dos fast thinkers e dos «Lucky Luke da economia» – e graças ao controlo dos principais meios de comunicação (propriedade dos grandes grupos económicos).
Os fast thinkers, como lhes chamava Pierre Bourdieu, são os intelectuais e editorialistas mediáticos sempre prontos a intervir no imediato em defesa dos poderes do dia, do «partido do dinheiro», do establishment económico e financeiro neoliberal.
Os «Luky Luke da economia», são os economistas, os ex-ministros das Finanças frustrados e os jornalistas económicos que aparecem constantemente nas televisões a pensar «mais depressa do que a própria sombra», a reciclar ideias e homens a uma velocidade surpreendente, e que são capazes de defender tudo e o seu contrário, para intimidar os cidadãos e defender o «partido do dinheiro».
Como afirmam os autores deste livro: «Hoje, o medo tornou-se uma forma habitual de gestão das empresas, e mesmo da própria governação. Um medo que deve justificar tudo, e tudo mergulhar num nevoeiro suficientemente espesso para que os responsáveis pelas catástrofes económicas não sejam nunca postos em causa e possam escapar graças a várias argúcias».
Como escreve o economista e jornalista espanhol Joaquín Estefania no seu livro «LA ECONOMIA DEL MIEDO» (publicado em Novembro passado): «Hoje, já não se trata apenas dos temores tradicionais à morte, ao inferno, à doença, à velhice, à vulnerabilidade, ao terrorismo, à guerra, à fome, às radiações nucleares, aos desastres naturais, às catástrofes ambientais, mas também – e convém não banalizar as diferenças – do medo a esse novo poder fáctico a que chamam ‘a ditadura dos mercados’, que tende a reduzir os benefícios sociais e as conquistas da cidadania económica do último meio século; medo a ficar sem esse bem cada vez mais escasso que se chama trabalho, medo a que se reduza o nosso poder de compra, medo ao subemprego, medo à marginalização económica e social».
Foi a este ponto que chegámos 30 anos depois do início da «contra-revolução neoliberal». E é aqui que estamos, sem sabermos ainda muito bem como sair desta crise esmagadora e terrível. Mas há, tem de haver, alternativas!
Entretanto, é bastante útil ler este livro, muito bem traduzido por João Carlos Alvim e oportunamente editado pela VEGA, apenas seis meses depois da sua publicação em França.

Livraria Barata, Lisboa, 14 de Dezembro de 2011

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

AS ESQUERDAS NO MUNDO - A crise da social-democracia europeia

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Publicado no «Le Monde Diplomatique», edição em português, de Novembro de 2011.

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A crise em que o neoliberalismo cada vez mais mergulha a Europa vai exigir respostas que convocam as sociedades como um todo, do movimento sindical e popular ao associativismo e às comunidades locais, dos espaços informais de debate à participação em todas as estruturas criadas pelo poder democrático local ou nacional. O sistema partidário, base da representação democrática, é um dos palcos onde se joga parte importante da reflexão e das escolhas políticas e ideológicas que poderão traduzir-se, ou não, na reabilitação da democracia, na defesa do Estado social e no combate às oligarquias financeiras que minam as finalidades igualitárias e universalistas que ainda se afiram nas sociedades. Em Portugal como noutros países europeus, de que lado vão colocar-se os partidos da Internacional Socialista, que se reivindicam da social-democracia?
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FACE À GRAVÍSSIMA crise em que a Europa está mergulhada desde 2008, é preocupante constatar a incapacidade dos partidos membros da Internacional Socialista (IS) para formular e apresentar propostas políticas, económicas e sociais que constituam verdadeiras alternativas às políticas neoliberais que estão a corroer a democracia, o Estado social e a própria União Europeia

Não é um problema exclusivamente grego ou português. É um problema que afecta toda a social-democracia europeia. E a questão é esta: como explicar que o evidente fracasso do neoliberalismo – que vem desencadeando, há mais de uma década, crises económicas e financeiras cada vez mais graves – não tenha provocado uma forte reacção política e um sobressalto ideológico dos partidos da esquerda europeia que alternam no poder com partidos de direita?

A resposta não é difícil de encontrar. Através de uma metamorfose a que Antonio Gramsci chamou «transformismo», a maioria dos partidos da Internacional Socialista foi-se tornando, sobretudo a partir da última década do século XX, uma «variante social-democrata do neoliberalismo», tal como o thatcherismo se tornara uma «variante neoliberal do conservadorismo clássico».

Princípios e valores como a igualdade, a solidariedade e a universalidade – que constituíam a base do compromisso histórico da social-democracia – foram sendo substituídos por palavras de ordem tão apelativas e equívocas como: «criação de riqueza», «reforma» e «modernização».

No vocabulário dos partidos da IS passaram a predominar termos de cariz ideológico claramente conservador. Por exemplo: «equidade» e «livre escolha», «indivíduo» e «família». Como que fazendo-se eco da sentença proferida em 1987 pela «papisa» do neoliberalismo, Margaret Thatcher: «Sociedade é coisa que não existe. Só o indivíduo e a família existem». E como se os mais pobres pudessem usufruir da «livre escolha» numa sociedade totalmente mercantilizada, dominada pelo poder do dinheiro, pela ganância e pelo lucro.

Agitando a bandeira da «modernização» – empunhada, a partir do final do século XX, por Tony Blair («New Labour») e Gerhard Schröder («Novo Centro») – os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas europeus optaram por identificar-se apenas com as classes médias, desinteressando-se de representar também os interesses das classes baixas, cujas reivindicações foram consideradas «arcaicas» ou «retrógradas». Não surpreende que os partidos populistas de direita e extrema-direita tentem explorar esse terreno vago.

Começou então a ser recorrente o discurso justificativo da famosa «terceira via», com afirmações do género: «as diferenças entre a esquerda e a direita são obsoletas»; «não há alternativa à globalização neoliberal»; «nada temos contra quem consegue acumular grandes fortunas». Para Tony Blair, este era um sinal identificador da chamada «esquerda moderna», que dizia representar.

A social-democracia contribuiu, assim, para a «colonização» da sociedade civil por uma espécie de «senso comum neoliberal», bem patente nos vocábulos, nos conceitos e no discurso produzidos pelas elites dirigentes.

A «empresa» passou a ser o novo modelo do Estado, tal como a «gestão empresarial» o novo modelo de direcção dos organismos estatais. O sector público passou a ser considerado, por definição, ineficaz e ultrapassado – designadamente «por visar objectivos sociais que vão muito para além da estrita eficácia económica e da rentabilidade». Para os neoliberais, mesmo o Estado exíguo só pode salvar-se se cumprir religiosamente as regras que o mercado impõe.

O «homem de negócios» e o «empreendedor» foram elevados à categoria de heróis e exemplos a seguir, e o «empreendedorismo» passou a ser um termo recorrente no discurso dos políticos e tecnocratas que alternam no poder.

«Esquerda moderna» e «nova direita»

A CHAMADA «esquerda moderna» foi-se aproximando, assim, da «nova direita», claudicando perante a hegemonia das ideias ultraliberais.

Esta hegemonia é justificada, no discurso neoliberal, pelo «desabrochar de um novo individualismo», pelo «advento da nova sociedade pós-industrial», pela «revolução tecnológica», pela luta do capital em prol do seu direito a gerir o mundo e pela globalização da economia internacional (que foi o meio encontrado pelo capital para se expandir e sair do impasse em que se encontrava) – como salienta o sociólogo Stuart Hall, nos ensaios que escreveu sobre o «populismo autoritário» de Margaret Thatcher e de Tony Blair.

Recorrendo a outra ferramenta conceptual gramsciana, é fácil constatar que estamos perante um exemplo de «hegemonia cultural», que a direita foi impondo e consolidando para melhor controlar o poder político. Essa hegemonia foi obtida graças ao apoio do poder económico e financeiro e à enorme pressão que este exerce, quer sobre os mais importantes órgãos de comunicação social (que lhe pertencem), quer sobre os partidos políticos dominantes (que financia).

Constituiu-se, assim, parafraseando Antonio Gramsci, um «bloco histórico» dominado pelos partidos da direita neoliberal, que arrastam atrás de si os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas.

Os partidos membros da IS tornaram-se uma espécie de organismos híbridos constituídos por duas tendências: a tendência neoliberal, que ocupa a posição dominante, sobretudo quando o partido está no governo, e que se traduz, basicamente, na aceitação do fundamentalismo do mercado; e a tendência social-democrata, subordinada e marginal, cujo objectivo essencial é conservar apoios da esquerda tradicional, sobretudo quando se aproximam eleições.

Esta duplicidade implica o recurso a várias habilidades retóricas, para tentar iludir a óbvia contradição entre as duas tendências e tentar disfarçar a dimensão subalterna das propostas social-democratas nos programas políticos apresentados ao eleitorado. Os termos «modernização» e «reforma» tornaram-se recorrentes, tanto no discurso dos social-democratas como no dos neoliberais.

Stuart Hall identificou os principais objectivos dessa «reforma» considerada «modernizadora»: abrir a via aos investimentos privados e tornar cada vez mais difusa a distinção entre público e privado; cumprir à risca os critérios de eficácia e rentabilidade impostos pelo mercado; instalar a autoridade do gestor empresarial (o manager) aos comandos da administração pública; reformar as práticas do trabalho acentuando a sua individualização; incitar os assalariados a concorrerem uns contra os outros através de instrumentos de motivação financeiros que minam a negociação colectiva; «quebrar a espinha» aos sindicatos diminuindo o seu poder reivindicativo; reduzir drasticamente os efectivos e os custos dos serviços públicos; colocar e/ou manter os salários do sector público abaixo dos salários do sector privado; reorganizar os serviços segundo o princípio do funcionamento «a duas velocidades», através da chamada «selectividade».

Assim se tenta constituir, por exemplo, um serviço nacional de saúde e um ensino «a duas velocidades»: uma para os ricos, livres de escolher entre público e privado, e capazes de desenvolver os seus próprios sistemas privados de saúde e de formação escolar (diminuindo o contributo para a sustentabilidade dos sistemas públicos); outra para os pobres, abandonados à sua sorte, impotentes perante o esvaziamento dos cofres públicos, o fim da protecção social, do salário mínimo, do direito ao trabalho e à sua duração fixada na lei. Isto em detrimento dos princípios basilares da solidariedade, igualdade e universalidade. E abrindo caminho para, por exemplo, tornar a saúde um dos sectores mais lucrativos para o investimento privado, através da construção e gestão de hospitais públicos.

Seguindo o exemplo do «blairismo», a comunicação política tem sido a arma fundamental dos partidos da IS, na tentativa de conciliar o inconciliável e de justificar o injustificável – como, por exemplo, a pesca à linha que têm vindo a fazer nos programas políticos da direita neoliberal, com o objectivo de conquistar votos no «grande centro» ou «centrão». Trata-se de «envernizar», recorrendo à retórica, propostas políticas neoliberais, tornando-as mais atractivas aos olhos dos seus eleitores tradicionais: classes médias e classes populares.

Reduzindo a política à comunicação e à gestão da opinião, para seduzir os diferentes públicos, vários partidos da IS terão conseguido realizar efemeramente a quadratura do círculo, conquistando muitos votos ao centro e à direita, mas terão perdido seguramente a alma e a coerência ideológica e política. Tal mudança não foi só em direcção ao «centro». Foi sobretudo em direcção ao chamado «centro do centro», afastando-se assim esses partidos da sua caracterização, aliás bastante discutível, como partidos de centro-esquerda.

O «centro do centro» corresponde àquilo a que Maurice Duverger chamou o «juste milieu». É evidente que ele tinha razão quando afirmou, há mais de 40 anos, no livro intitulado La Démocratie sans le peuple (publicado em 1967), o seguinte: «O centrismo favorece a direita. Aparentemente, as coligações do “juste milieu” são dominadas, ora pelo centro-direita, ora pelo centro-esquerda, seguindo uma oscilação de fraca amplitude. (…) Estas aparências mascaram uma realidade completamente diferente. Por trás da ilusão de um movimento pendular, o centro-direita domina quase sempre. (…) Em vez de implicar uma transformação lenta mas regular da ordem existente, a conjunção dos centros desemboca no imobilismo, ou seja, no triunfo da direita».
O «centro do centro» é, pois, um território propício a renúncias ideológicas e abdicações políticas, invocados os superiores interesses da Nação, do País ou do Estado, consoante a carapuça que cada partido queira enfiar.

Letargia ideológica e política

ANTONIO Gramsci dizia que «a crise é quando o que é velho está a morrer e o que é novo não consegue nascer». Estamos a assistir à agonia do capitalismo financeiro, que pode ser longa e ter consequências ainda mais devastadoras, mas a social-democracia continua em estado de letargia ideológica e política, quando dela seria legítimo esperar a formulação de propostas diferentes e inovadoras, claramente distintas do neoliberalismo vigente.

Os partidos da IS deviam promover a crítica do individualismo dominante e reabilitar os valores da solidariedade, igualdade e universalidade, ferramentas conceptuais indispensáveis à formulação das políticas públicas. Deviam combater o cepticismo e a desconfiança em relação à social-democracia, cujo papel histórico corre o risco de ser ultrapassado pelo sentimento generalizado entre os cidadãos de que não há alternativa, de que não podem influir no curso dos acontecimentos porque os mecanismos democráticos já não conseguem funcionar sob o peso de uma necessidade histórica e económica esmagadora.

A social-democracia europeia não devia apresentar-se ao eleitorado como mera alternativa formal, tão-só capaz de gerir menos mal ou de gerir melhor que a direita neoliberal. Devia apresentar propostas políticas inovadoras e mobilizadoras, incutindo nos cidadãos confiança na capacidade de regeneração das sociedades democráticas e inculcando neles o sentimento de que continua a ser possível fazer escolhas democráticas claramente diferenciadas.

Jacques Attali, que está longe de ser suspeito de esquerdismo, escreveu há poucas semanas no L’Express que já há quem reconheça que «esta crise foi consequência do enfraquecimento da parte dos salários no valor acrescentado».

Declaração surpreendente, vinda de quem vem. Mas Attali ainda foi mais longe. Contrariando os adeptos da chamada «globalização feliz», ousou afirmar que, «se a diminuição do custo do trabalho fosse o factor-chave para sair vencedor da competição internacional, então o Haiti e o Bangladeche seriam os grandes campeões da globalização». Este reconhecimento tardio, verdadeiro «acto de contrição», vai claramente contra a teoria dominante da austeridade salarial, que continua a ser aplicada sem contemplações. Mas Attali não está só.

Num documento de trabalho (working paper) sobre «Endividamento e desigualdades», datado de Dezembro de 2010, encomendado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e coordenado por dois economistas – Michael Kumhof e Roman Rancière – pode ler-se o seguinte: «Restabelecer a igualdade redistribuindo os rendimentos dos ricos pelos pobres, não agradaria só aos Robin dos Bosques do mundo inteiro; poderia também poupar à economia mundial uma nova crise de grandes proporções».

Em entrevista recente, Rancière reafirma que uma das grandes alavancas da luta contra o crescimento das desigualdades consiste, pura e simplesmente, no aumento dos salários das classes médias e baixas. E acrescenta: «Imposta ou negociada, a recuperação dos rendimentos dos trabalhadores é a mais segura das respostas para evitar a recaída nos diversos problemas que conduziram à crise. Sem o que, como mostra o nosso estudo, há fortes probabilidades de voltarmos a ser confrontados com o mesmo cenário» (Marianne, 25 de Junho de 2011).

Todavia, não são soluções como esta que se divisam no horizonte da crise. Aquilo a que assistimos é a mais cortes nos salários, ao aumento do desemprego (que dá vantagem aos patrões nas negociações salariais) e a uma concorrência cada vez mais feroz dos países emergentes, a par da desindustrialização de vários países da eurozona. O que significa, conforme salienta o economista Patrick Artus, que «os países da OCDE já conhecem ou vão conhecer uma travagem ou mesmo uma diminuição dos salários» no futuro imediato.

Artus afirma, aliás, que a Europa nada ganhará em alinhar numa política de «hipercompetitividade por compressão salarial», como a que pratica a Alemanha. Porque a União Europeia não pode ser um conjunto de Alemanhas, e porque, se os salários baixarem em todos os países europeus, nenhum conseguirá conquistar partes de mercado e todos sofrerão um recuo no consumo. Pior ainda: «reduzir os salários não melhora significativamente a competitividade em relação aos países emergentes, dada a enorme diferença de custos de produção entre estes países e os da OCDE [Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico]». Seria, portanto, um sacrifício inútil.

A social-democracia e a austeridade

O FUTURO da social-democracia depende muito da correcta interpretação destes sinais. Um novo paradigma não pode ser construído a partir de políticas de austeridade brutais, que contribuem para aumentar as desigualdades, a pobreza e o desemprego. Tem de ser construído com base em soluções que contribuam para atenuar os sacrifícios dos cidadãos e evitar a deflagração de novas crises. Nesta perspectiva, há vários instrumentos que são incontornáveis.

Desde logo, a recuperação dos rendimentos dos trabalhadores, associada a outras alavancas essenciais da luta contra as desigualdades, designadamente: um forte aumento da progressividade do imposto sobre os rendimentos, erradicando os nichos fiscais em que os mais ricos costumam refugiar-se; e um controlo eficaz dos movimentos de capitais, através, por exemplo, da aplicação da taxa Tobin sobre as transacções financeiras, que a alta finança considera uma verdadeira bomba, de que nem quer ouvir falar. Sem um controlo efectivo da globalização, designadamente dos movimentos de capitais, será muito difícil, se não impossível, reduzir as desigualdades salariais.

Também é essencial combater a corrupção, a fraude e a evasão fiscais, com instrumentos legais e meios materiais e humanos adequados, que tornem esse combate eficaz. Além disso, é indispensável impor fortes restrições na esfera financeira, cuja hipertrofia se alimenta do negocismo sem freio e do excesso de rendimentos e bonificações de que beneficia uma ultra-elite.

Será muito difícil revolucionar ou reformar a social-democracia num só país. Por isso a Internacional Socialista devia promover a elaboração de uma espécie de programa comum da social-democracia, que seria um documento orientador dos programas dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas, naturalmente distintos entre si e adaptados às realidades nacionais.

Os partidos da IS têm de libertar-se da canga ideológica da «terceira via», da influência nociva do «blairismo» e da ilusão de que existe um «novo centro». Têm de renovar os discursos, refazer os programas e ancorar as novas propostas políticas em valores tão basilares como a soberania popular, a igualdade entre os cidadãos, a universalidade de direitos e a solidariedade social.

O objectivo da social-democracia tem de ser o desenvolvimento humano, a justiça social e o bem-estar da maioria dos cidadãos através da justa redistribuição das riquezas, da garantia de sustentabilidade dos serviços públicos essenciais (Educação, Saúde, Segurança Social), da defesa do Estado democrático e dos direitos, liberdades e garantias fundamentais em que ele assenta.

Parafraseando o título de um artigo de Joseph Stiglitz, o neoliberalismo é «o triunfo da cupidez». Os neoliberais são as famosas raposas de Lacordaire, à solta num galinheiro sem rede. As «reformas» que reclamam visam sobretudo satisfazer a cupidez dos plutocratas e a ganância das oligarquias financeiras.

Alguém lembrou que, tal como Jesus Cristo anunciou o reino de Deus e foi a Igreja que apareceu, também o capitalismo anunciou o reino da Liberdade e foi a oligarquia financeira que apareceu (e a plutocracia que se instalou no poder).

Moral da história: não é descurando a protecção dos galinheiros que se afugentam as raposas. Qualquer alternativa de esquerda ao neoliberalismo passa pela recuperação e renovação ideológica dos partidos da Internacional Socialista, pelo combate às oligarquias financeiras e pela reabilitação da democracia.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

UM HERÓI DO NOSSO TEMPO

(Publicado no «Expresso» em 18 Outubro 1997)

ESTOU A VÊ-LO em cuecas, sempre grotesco e rasca, na primeira página do «Tal & Qual». Ou de copo de «whisky» na mão, a rir-se, no meio da sua trupe carnavalesca. Ou, ainda, vestido de palhaço, a fazer um manguito com o dedinho espetado para cima e a proclamar, muito ufano: «Quero que se foda a Assembleia da República! Já disse que me estou cagando para Lisboa! O País não se revê em Lisboa, naqueles parvalhões que andam por lá e têm a mania que mandam nisto tudo!». São imagens e palavras do presidente do Governo Regional da Madeira. É o retrato a corpo inteiro de Alberto João, o homem. No seu melhor. É o perfil de um vero herói do nosso tempo.

Cito o ministro das Finanças, professor Sousa Franco: «Mesmo as obras colectivas têm os seus heróis. Ninguém hesitará em identificar como tais, com os seus defeitos e virtudes, João Bosco Mota Amaral, nos Açores, e Alberto João Jardim, na Madeira». Foi escrito no «Público» de terça-feira passada, dia 14 de Outubro. No mesmo dia em que, no semanário «O Diabo», Alberto João, o homem, agora também promovido à categoria de «herói», desancava «o polvo que vai tomando conta de Portugal», o «actual polvo socialista que ocupa quase todo o País», denunciando a «máquina de propaganda do polvo», a «propaganda plutocrato-socialista», e alertando para o «nojo em que tudo isto se vai transformando». Nem mais, nem menos.

Será que estamos perante mais um caso de puro masoquismo político? Será que, nas relações entre o Governo da República e o Governo Regional da Madeira, também se aplica o ditado popular segundo o qual «quanto mais me bates mais gosto de ti»? O que eu (porventura «ninguém») posso dizer é que, com «heróis» do jaez de Alberto João, o homem, vou ali e já venho.

O doutor António de Sousa Franco é, incontestavelmente, um professor muito competente e um reputado especialista em Finanças Públicas. A ele se deve, sem dúvida alguma, significativa parte do êxito da política de «rigor» orçamental deste Governo. Tem, ainda por cima, a preocupação de explicar, pelo seu próprio punho, as razões, os mecanismos e as consequências das suas decisões mais importantes. Independentemente dos méritos ou deméritos da tese que defende, o texto sobre «Finanças regionais - Novo rumo, vida nova», dado à estampa no «Público», é um modelo de clareza e coerência que se aplaude e que outros ministros deveriam porventura cultivar. Mas a verdade é que no melhor pano cai a nódoa e que só por razões que terão a ver com o calendário político e eleitoral se compreenderá que o ministro das Finanças não tenha resistido à tentação do elogio ditirâmbico, erigindo Mota Amaral (o que ainda é o menos) e Alberto João Jardim (o que é um escândalo) em heróis do nosso tempo. Francamente, não havia «nexexidade».

O que fundamentalmente me preocupa - e julgo que preocupa muito mais gente neste País - é que o método político da ameaça, da chantagem e do ultimato, associado a constantes palhaçadas e aos insultos mais soezes e desbragados, não só tenha total vencimento, como, ainda por cima, seja objecto dos mais rasgados elogios. Num país à beira de eleições autárquicas e, sobretudo, à beira de um referendo sobre a regionalização do Continente, o sinal emitido por Sousa Franco, ao avalizar o comportamento político, considerado «heróico», de Alberto João, o homem, é deveras preocupante.

Dizia um grande escritor francês, Romain Rolland, que «um herói é aquele que faz o que pode. Os outros não o fazem». Alberto João, o homem, faz seguramente o que pode, mas também o que não pode e o que não deve. Talvez por isso até mereça ser considerado um super-herói. Já outro grande escritor do nosso tempo, o italiano Primo Levi, dizia que «uma grande lição da vida é a de que os imbecis têm por vezes razão. Mas é preciso não abusar dela. Chama-se demagogia à arte de abusar dela». Alberto João, o homem, não tem feito outra coisa ao longo da sua já bem vasta carreira política.

A complacência com que a generalidade da classe política portuguesa - e não apenas a actual - tem aturado, ao longo de quase duas décadas, as atitudes grotescas, os comportamentos grosseiros e as palhaçadas políticas do doutor Alberto João Jardim, acaba por ter agora, como perigosíssima consequência, a institucionalização de um modelo de herói do nosso tempo, que pode e deve ser seguido como exemplo por esse país fora. Em cuecas.

UBU, REI DO FUNCHAL

(Publicado no «Expresso» em 4 Out 1997)

ALBERTO JOÃO, o homem, passou-se de todo. Politica e ideologicamente falando, está claro. Embora a loucura seja, nele, um estado normal, paulatina ou resignadamente aceite pelos governos da República, há quase duas décadas, conforme a cor dos «cubanos» que ocupam o poder no Terreiro do Paço. Se há bandeira que os mais ferrenhos adeptos da regionalização podem empunhar e desfraldar, neste país de opereta, é sem dúvida a que tem por símbolo essa figura grotesca que governa a Região Autónoma da Madeira como o Rei Ubu.

A prosa que esta semana ele deu à estampa n’ «O Diabo» é simplesmente delirante. É como se ele estivesse a olhar para o seu próprio poder - para o modo como ele o exerce no Funchal e arredores - e quisesse exorcizar os fantasmas que o perseguem, deportando-os para o continente. O retrato que ele pinta do poder em Lisboa e regiões anexas é, bem vistas as coisas, um verdadeiro auto-retrato. Vai daí, denuncia os «porreirismos» e «narcisismos», os «bonzos do sistema», as «tríades» instaladas no poder, os «obedientes», os «serventes» e os «bem-comportados», a falta de «efectivo pluralismo» na comunicação social, a «franca recessão» das «liberdades públicas», a «infernal máquina de propaganda» e «o regime da subsídio-dependência para angariar votos», em suma: aquilo a que ele chama a «macaízação do Continente» e o «grave risco de mexicanização de Portugal». Caso para dizer que auto-retrato tão rigoroso e fiel de Alberto João, o homem, bem podia dispensar subsídios do governo regional.
Mas o grotesco não tem limites e a pândega criatura vai mesmo ao ponto de lançar um patético apelo à comunidade internacional: «É bom que as embaixadas acreditadas em Lisboa vão entendendo o que se passa...» (as reticências são dele). E o que é que Alberto João, o homem, propõe que se faça, enquanto a NATO e a ONU não intervêm para salvar a Pátria? Todo um programa que garanta, entre não muitas outras coisas, a «recuperação das Forças Armadas», o estabelecimento de «um eficaz aparelho de segurança», o «futuro das reformas dos que trabalharam», a «libertação da Cultura», uma «regionalização adequada e inteligente», uma «Agricultura interpenetrada com valores do mundo rural» e a defesa, «em absoluto», do Ambiente e dos Recursos Naturais, «em particular a água e os mares». Para tanto, é necessário «o privilegiar dos operacionais que o PSD tem e de qualidade», assim como «o fim disciplinado das excessivas discussões internas» (presume-se que dentro do PSD). E quem é o «líder operacional, culto, inteligente e criativo» capaz de levar a cabo tal empresa - quem é, quem é? O professor Marcelo Rebelo de Sousa, pois claro! Diz o Rei Ubu.

Para quem não saiba, «Ubu Roi» é um personagem que «encarna todo o grotesco que existe no mundo» e que foi criado, há pouco mais de um século, pelo grande escritor francês Alfred Jarry (que por acaso morreu faz agora 90 anos). «Figura surgida da desordem e da sombra, emanação bruta e risível de um pensamento que não recua perante nada para se satisfazer a si próprio, magarefe temível, retórico implacável», como o descreve Charles Grivel, Rei Ubu tem, simultaneamente, a cruel voracidade de um «ogre» e a prosápia superlativa de um «fantasma desarticulado» que «horroriza e seduz pelas gargalhadas que provoca». Sempre que leio e releio os cinco ciclos de Ubu e olho para a sua iconografia, é a figura chapada de Alberto João, o homem, que me vem à cabeça.

Não por acaso, a gesta delirante e as atribulações patéticas de Ubu, que começou por ser rei dos labregos, tiveram a sua primeira representação a cargo das marionetas do «Théâtre des Phynances», em 1888. Já então - e sempre - as finanças. Como no coro dos labregos em «Ubu Cocu»: «Dêem finanças - ao Pai Ubu. Dêem todas as finanças - ao Pai Ubu. Que não reste nada - nem um tostão escape - aos sovinas - que vêm sacá-las. Dêem todas as finanças - ao Pai Ubu»! Custa-me muito a crer que Alberto João, o homem, não tenha lido Alfred Jarry. Se ele não o leu, ainda é mais genial do que eu pensava. Rei Ubu é eterno e Alberto João, o homem, está cá na Terra - mais precisamente, no Funchal - para o demonstrar. O professor Sousa Franco devia meditar seriamente no assunto.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

DE DOUTOR A ENGENHEIRO

BONDADE imensa a do Mário Crespo, que me encarrapitou nas cumeadas da república, logo a abrir a crónica que dedicou à altercação entre Teresa Caeiro e eu próprio na SIC Notícias. Claro que, quanto mais alto o cume, maior o trambolhão que eu daria. Mas, ao invés do que ele sugere, não sofro de qualquer «complexo do doutoramento nacional». Nunca fiz nem desejei fazer doutoramentos, muito menos um doutoramento ad hoc.


A Licenciatura em Direito (que só dá direito a dr., não a Doutor nem a Prof. Doutor), obtive-a na Universidade de Lisboa no tempo da outra senhora. Aluno de cinco ministros de Salazar (Raul Ventura, Paulo Cunha, João Lumbrales, Marcelo Caetano, Cavaleiro Ferreira), nem assim fui contaminado pelo «complexo do doutoramento nacional», que, segundo Mário Crespo, é revelador de «questões de fundo da nossa sociedade».

Saliento que, na altercação com Teresa Caeiro, ela não me tratou apenas por «senhor» – estilo «o senhor diz», «o senhor faz», «o senhor acontece», no tom coloquial por vezes adoptado nos frente-a-frente. Não. Ela tratou-me por «senhor Alfredo», e não simplesmente por «Alfredo Barroso», como sempre fizera em meia dúzia de debates anteriores.

Que a intenção dela era «um insulto realmente duro para tentar humilhar um oponente», é o próprio Mário Crespo quem o afirma. Por isso me espanta que ele ache «espantoso» ter eu reagido ao insulto. Nem se lembra dos outros insultos que ela me dirigiu. Mas Teresa Caeiro é reincidente. Também Fernando Rosas teve de a meter na ordem, noutro frente-a-frente, por ela estar a ser «impertinente, ignorante e incompetente».

Nunca exijo que me tratem por dr. mas apenas que me tratem com respeito. Não serei tão «saudavelmente moderno e desempoeirado» como o Super-Álvaro, mas não sou tão reaccionário e extravagante como o «génio de Vancouver». Li um livro dele para tentar perceber em que terra é que assenta os pés. Duvido que seja em Portugal!

Admiro a cultura anglo-saxónica, mas não consigo ludibriar o meu código genético (nasci em Roma, filho de uma italiana de Treviso e de um português de Portimão). Não troco a cultura latina pela cultura anglo-saxónica. Sei de virtudes e defeitos de cada uma delas, admiro ambas, não desprezo nenhuma. Mas o WASP (White Anglo-Saxon Protestant) não me fascina. Faz-me lembrar que, em matéria de preconceitos sociais e racismo, as sociedades inglesa e americana são bem piores do que as europeias.

Pergunto: alguém imagina o PM britânico, David Cameron, a dizer ao seu motorista oficial: «Trate-me por David»?! E alguém imagina Mário Crespo a tratar o ministro da Economia por «senhor Álvaro» ou mesmo só «Álvaro»?! Por exemplo: «Ó Álvaro, você não acha que a sua proposta de baixar a Taxa Social Única entre 10 % e 20 % é um insulto aos trabalhadores e aos desempregados?!». Ou então: «O senhor Álvaro não acha que o aumento brutal dos preços dos transportes públicos é um insulto aos trabalhadores que vivem nos subúrbios e ganham salários de miséria?!».

Para rematar. Quando morava no Restelo, comprava jornais num quiosque frente aos pastéis de Belém. O dono, homem simpático e malicioso, tratava-me por «senhor engenheiro». Um dia decidi esclarecê-lo. Ele saudou-me: «Bom dia, senhor engenheiro!». Eu pedi-lhe: «Trate-me só por senhor, ou então por doutor. Eu não sou engenheiro». Ele respondeu: «Fique descansado, senhor engenheiro»! E foi deste modo que não consegui resolver «uma das questões de fundo da nossa sociedade»…

«Expresso» de 20 Ago 11

domingo, 31 de julho de 2011

SUPER-ÁLVARO E AS DOSES DE CAVAL(L)O

Ficámos a saber, através de jornais, que o actual ministro das Finanças, Vítor Gaspar, é um adepto da «desinflação competitiva» e um defensor da «austeridade orçamental», e que o economista que mais admira é Milton Friedman, precursor da «escola de Chicago» e mentor dos Chicago boys, que aproveitaram o Chile como laboratório, durante a ditadura militar de Pinochet, para aplicarem o seu modelo económico neoliberal, ou ultraliberal (tanto faz).

Mas não ficámos a saber, através de jornais, que o actual super-ministro da Economia, Emprego, Obras Públicas, Transportes e Comunicações (ufa!), Álvaro Santos Pereira, é adepto de Domingo Felipe Cavallo, economista e político argentino que cometeu a proeza de conseguir ser, sucessivamente, presidente do Banco Central da Argentina durante a sangrenta ditadura dos generais («mandato» de Jorge Videla), depois ministro da Economia do Presidente peronista Carlos Menem (perdão aos generais da ditadura, venda ilegal de armas, «Plano Cavallo» com efeitos desastrosos para o país), e, finalmente, ministro da Economia do Presidente radical de centro-esquerda Fernando de la Rua (revoltas populares contra as medidas de Cavallo, que o levaram à demissão, à declaração do estado de sítio e à renúncia do Presidente).

Durante as décadas de 1980 e 1990, a Argentina foi a menina dos olhos do FMI, que considerava o governo de Buenos Aires o seu «melhor aluno», e Domingo Cavallo um discípulo dilecto do Consenso de Washington (mais ainda que os generais neoliberais da ditadura militar). A aplicação da receita («Plano Cavallo») foi brutal: despedimentos em massa; privatização a toque de caixa dos serviços de utilidade pública, designadamente, correios, gás, electricidade, água, telefones e companhias petrolíferas (40 mil milhões de dólares encaixados pelo Estado evaporar-se-iam na paisagem); (neo)liberalização intensiva da economia e do comércio externo; restrições brutais aos levantamentos bancários e congelamento de fundos (o famoso corralito), medida só decretada depois de os especuladores nacionais e internacionais terem conseguido colocar no estrangeiro cerca de 15 mil milhões de dólares; subida das taxas de juro; adopção do sistema de paridade fixa entre o dólar e o peso (que deu cabo das exportações); lei do défice zero (decretada ao abrigo de poderes especiais); diminuição em 13 % dos salários da função pública e das pensões de aposentação; cortes brutais nas despesas públicas.

O resultado destas «doses» de Cavallo foi desastroso. Desde a ditadura militar (1976-1983) ate à declaração do estado de sítio, em 20 de Dezembro de 2001 (depois de milhares de argentinos invadirem as ruas em manifestações de protesto, com assaltos a supermercados e outros estabelecimentos comerciais, e a repressão a causar 31 mortos e mais de mil feridos): a dívida externa argentina disparou de 7,6 para 132 mil milhões de dólares; o desemprego subiu de 3 para 20 %; os argentinos em situação de pobreza extrema passaram de 200 mil para cinco milhões; os que viviam no limiar da pobreza passaram de um milhão para 14 milhões (isto, num total de 37 milhões de habitantes em 2001); e ascendia a 120 mil milhões de dólares o montante das fortunas colocadas no estrangeiro por políticos, patrões e sindicalistas corruptos.

Mas o que é extraordinário, depois deste balanço catastrófico, é que Domingo Cavallo tenha publicado, em 2010, de colaboração com Joaquín Cottani, um estudo intitulado «Making fiscal consolidation work in Greece, Portugal, and Spain: Some lessons from Argentina». Não, não está enganado, caro leitor: são lições dirigidas aos «países europeus em dificuldades e com um alto nível de endividamento», como sublinha o nosso super-Álvaro, no livro que publicou em Abril passado: «Portugal na hora da verdade – como vencer a crise nacional» (Gradiva). Parece que Domingo Cavallo é um «reputadíssimo» teórico e professor de Economia. Quanto a Joaquin Cottani, economista-chefe para a América Latina do Citi, foi subsecretário de Estado de Política Macroeconómica, subsecretário de Estado das Finanças e representante financeiro da Argentina em Washington, nos anos 1990, antes de ser contratado como economista-chefe para a América Latina do Lehman Brothers (também leu bem!) entre 1998 e 2003. Face a estes dois admiráveis currículos, só poderemos concluir que tudo recomenda Domingo Cavallo e Joaquín Cottani como especialistas aptos a dar conselhos aos países «à rasca» da União Europeia.

Se também assim pensou, melhor o fez o nosso ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, que cita abundantemente Cavallo e Cottani, para defender uma redução substancial das «contribuições fiscais e sociais afectas ao factor trabalho em contrapartida de um aumento dos impostos sobre o consumo e/ou da criação de um imposto verde (um imposto sobre as emissões de carbono)». Como diz Álvaro Santos Pereira, «Cavallo e Cottani defendem que seria possível reduzir entre 10 e 20 pontos percentuais as contribuições sociais, através do aumento da taxa geral do IVA em 2 ou 3%, ou através de uma harmonização das diversas taxas do IVA». Sucede que, por cá, «a taxa geral do IVA é de 23 %, mas a taxa reduzida é de 13 %, e a taxa super- reduzida é de 6 %». Ora, prossegue o nosso Super-Álvaro, «de acordo com Cavallo e Cottani, as perdas de receitas fiscais associadas à inexistência de uma taxa de IVA uniforme são muito substanciais». Em suma, para o nosso ministro da Economia faz todo o sentido «a substituição das taxas sobre o trabalho (como a taxa social única) pelo IVA (…), pois penaliza o consumo e estimula a poupança, que nos últimos anos tem baixado para níveis pouco salutares». Entre os 10 e os 20 pontos percentuais de que falam Cavallo e Cottani, Álvaro Santos Pereira opta por uma redução de 15 pontos percentuais da TSU, ou seja, das contribuições do patronato para a Segurança Social, acompanhada de uma correspondente subida do(s) IVA(s)! Não me pronuncio aqui sobre a bondade ou maldade desta medida preconizada pelo economista e ministro. Limito-me a oferecer o merecimento dos abundantes autos relativos a Cavallo e Cottani.

Confesso que foi um eufórico e laudatório ensaio de Henrique Raposo, publicado no EXPRESSO/Economia em 2 de Julho de 2011, com o melodioso título «Uma nova narrativa para Portugal», que me fez mergulhar na leitura do recém-publicado livro de Álvaro Santos Pereira que já referi. Raposo exprime uma grande exaltação patriótica pelo facto de ASP ser contra «a obsessão fontista que eleva o Estado a motor da economia, a obsessão de viciar a sociedade nas obras públicas» (estaria a pensar em Cavaco Silva?), e também pelo facto de ASP criticar «a narrativa dos direitos adquiridos, nomeadamente ao nível da lei laboral e da lei das rendas, dois factores de rigidez que dificultam a actividade económica» (de facto, a malta que trabalha é um enorme empecilho!). Mas Raposo não se dá conta de que, mais adiante, entra em manifesta contradição com esse desprezo pelos «direitos adquiridos» quando afirma que, «sem um Leviatã forte no campo da lei, não há economia que funcione». E também quando sustenta que é precisa «uma forte argamassa moral entre cidadãos e entre cidadãos e políticos». Acontece.

Henrique Raposo cita alguns clássicos, cujas lições terão sido aprendidas pelo nosso Super-Álvaro: «Adam Smith, Hume, Burke, John Adams, Lincoln, Tocqueville (i. e., o esquadrão de liberais à moda antiga)». Mas não reparou (ou não quis reparar) que ASP também aprendeu muito com Domingo Cavallo, que não é propriamente um «liberal à moda antiga», e cujas lições invoca para defender uma diminuição brutal da taxa social única. Além disso, Raposo não terá reparado que ASP também é adepto do «défice zero» (até 2016), tal como Cavallo era adepto do «défice zero», que decretou em Julho de 2001, ao abrigo de poderes especiais, numa Argentina à beira da bancarrota e da declaração do estado sítio, que ele contribuiu para provocar.

Verdade se diga que o nosso Super-Álvaro também é defensor - e ninguém fala disso - de «uma eventual reestruturação da nossa dívida externa». Diz mesmo que «o nosso nível de endividamento é de tal modo elevado e os nossos desequilíbrios externos são tão preocupantes, que é difícil equacionar um cenário em que tal não aconteça». E acrescenta, logo a seguir, que «esta reestruturação abrangeria não só um reescalonamento da dívida pública nacional (…), mas também uma diminuição do valor da dívida (os chamados haircuts da dívida)». Não sei se, como ministro, ASP manterá o que escreveu como economista. Mas sei que, agora que estão na moda as «narrativas», é bom que elas sejam tão rigorosas e completas quanto possível.
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Publicado no «EXPRESSO/Economia» de 30 de Julho de 2011

sábado, 23 de julho de 2011

ALERTA, VEM AÍ TSU(NAMI)!

Por Ludovico Agrícola (*)

MISSÃO INGRATA, a que espera Pedro e Paulo, o vosso dueto da corda! Sem ofensa para ninguém (apressou-se a acrescentar BMW, que não domina completamente esta língua tão traiçoeira). É que, executar de cabo a rabo, e de supetão, as 291 medidas do memorando da troika, só pondo o país de borco. É verdade que ele já mal se aguenta em pé, mas, ainda assim, digo-lhe que é missão impossível. Olhe a Grécia!

Talvez (respondi). Mas eu não espero que, a meio do caminho, suceda a Pedro Passos Coelho o mesmo que a Durão Barroso em 2004: ser convidado para presidir à Comissão Europeia, depois de a coligação «Força Portugal» (PPD-CDS) ter sido sovada pelo PS nas eleições europeias. Lá ficaria Paulo Portas com Miguel Relvas nos braços, depois de ter aguentado, há sete anos, com o peso do «menino guerreiro»!

Por mais resistência e resiliência que revelem os vossos novos heróis (insistiu BMW), não vai ser nada bonito ver o povo a penar, açoitado por despedimentos mais fáceis, mais desemprego, menos segurança social, subida de preços dos bens essenciais, juros mais altos, aumento do IVA, mais dívidas, mais pobreza, privatizações à la carte, desmantelamento de mais serviços do Estado… E por aí fora. Já viu bem?!

E digo-lhe mais, Ludovico: a redução da TSU (Taxa Social Única), tão afagada por Catroga e outros gestores e empresários, é apenas o símbolo do tsunami ultraliberal que vai arrasar a sociedade portuguesa. Sempre que oiço falar em «coragem para tomar medidas», já sei que são medidas para sacrificar os que menos têm. Regra geral, os que falam dessa «coragem» são os que sabem que nunca serão incomodados.

O dr. Bretton Woods tem muita experiência, mas é homem de pouca fé! Eu, por exemplo, tenho fé no que disse há poucos dias ao DN o pai do futuro PM: «O meu filho vai manter o Serviço Nacional de Saúde o mais lato possível»! Acha que o filho terá lata para desmentir o pai?! Também os professores devem estar felizes e despreocupados, já que o PPD foi, com o PCP e o BE, um dos paladinos dos ‘setôres’ e ‘setôras’ durante as greves e manifestações contra as duas ministras da Educação de Sócrates!

Além disso, caro dr. Bretton Woods, temos neste país uma indústria da caridade alimentar que deve ser das mais eficazes do mundo. Digo «caridade», por respeito pela vedeta mediática que dirige o banco alimentar contra a fome, que declarou não apreciar muito o termo «solidariedade». Ela é católica e acha que a solidariedade tem mais a ver com «o Estado Social», que «é algo que devia existir como garantia mas que devia estar reduzido ao mínimo possível». Menos Estado, mais caridade. Está a ver?!

Confio muito (rematei eu) no triângulo institucional Cavaco-Nobre-Passos, que irá presidir aos destinos da pátria e da república! O sonho de Sá Carneiro (uma maioria, um governo, um presidente) não poderia ter encontrado tradução mais genuína. Acha que uma troika assim poderá alguma vez transformar-se num triângulo das Bermudas? Que venha a outra troika avaliar-nos. Nós cá estaremos. De mão estendida.

«Expresso» de 10/Junho/2011
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(*) Ludovico Agrícola é um pseudónimo de Alfredo Barroso

terça-feira, 19 de julho de 2011

BRIGADEIROS E PAPAGAIOS

Por Ludovico Agrícola (*)

HÁ EM PORTUGAL, caro doutor Bretton Woods, vários políticos que ambicionavam chegar a generais, mas nunca passaram de brigadeiros. E agora vingam-se, sempre que lhes dão a oportunidade, fazendo a vida negra a outros políticos, normalmente os seus próprios líderes. A cada um desses brigadeiros sempre faltou, como diria um portuense, uma “agucinha” na cabeça para afiar o lápis da perspicácia política.

Tais brigadeiros com um apara-lápis a menos pululam no PPD, mas também os há, embora mais raros, no PS (os coronéis não são para aqui chamados). O mais famoso da actualidade, o brigadeiro Catroga, ainda foi de férias para o Brasil, mas regressou a tempo de disparar o seu bacamarte contra o Serviço Nacional de Saúde. Não lhe ficou atrás, e ainda fez pior, a brigadeira Ferreira Leite, ao deixar bem claro num comício que não estava ali a apoiar Passos Coelho para PM, mas sim a lutar para remover Sócrates do cargo. Toda ela a destilar ódio e ressentimento, Ferreira Leite foi ainda mais longe, reclamando que Sócrates também seja removido da oposição.

Ora, foi precisamente da oposição que o removeu o brigadeiro Almeida Santos, presidente do PS, no seu inimitável estilo de orador de banquetes. Numa entrevista ao semanário Sol, diz ele às tantas, com a subtileza de um tijolo, que “talvez o afastamento dele (Sócrates) simplifique nessa altura (quando o PS perder as eleições) uma solução nacional”. Aliás, Sócrates “vai sair disto cansadíssimo, estafado e também precisa de repousar”. Pior era impossível. Ferreira Leite deve ter exultado. E Sócrates bem pode exclamar, encarando o presidente do PS: “Também tu, Santos?!”.

Pois é, meu caro Ludovico (atalhou o doutor Bretton Woods), esses brigadeiros são delicados como picaretas! Mas, enquanto eles não se reformam definitivamente, é preciso reformar Portugal. Nestas curtas férias em Colares estive a reler o Eça, e já ele, em Maio de 1871, falava do partido reformista – “um estafermo austero, pesado, de voz possante” – e da “imensa impressão que causava nos moços de fretes”. Dava sempre a mesma resposta a todas as perguntas que lhe faziam. Inclusive quando lhe perguntavam as horas ou se gostava mais do papá ou da mamã, ele respondia: “Economias!”. E Eça concluía dizendo que o partido reformista era “o papagaio do Constitucionalismo”. Tal como o que agora aí vem será o papagaio da troika FMI-BCE-UE!

Na campanha eleitoral (rematou BMW) o memorando da troika foi tratado como se fosse um texto letal: quem o lesse morreria a chorar. Já na famosa anedota dos Monty Python, usada em 1944 na ofensiva das Ardenas, os soldados alemães morriam a rir ao lerem “a piada mais engraçada do mundo”. A vossa dúvida, daqui a meses, será saber se o papagaio no poleiro estará morto ou a repousar (como no sketch do Papagaio Azul dos Monty Python). É uma dúvida dilacerante! Como executar um programa neoliberal que não arrase um país em poucos meses? Os gregos já devem saber.

«Expresso» de 03/Junho/2011

(*) Ludovico Agrícola é um pseudónimo de Alfredo Barroso

A TINA E O ‘TITTYTAINMENT’

Por Ludovico Agrícola (*)

TINA, você conhece (perguntou-me BMW)? Não, não é a Tina Turner! É a frase “There Is No Alternative” (não há alternativa), atribuída a Margaret Thatcher, e que se tornou refrão, slogan e símbolo da vulgata económica neoliberal. É o dogma na origem desta grande crise e dos programas de austeridade selvagens feitos à medida do célebre “Consenso de Washington”, impostos à bruta pelo FMI em todo o mundo e pelo BCE numa União Europeia desunida que não passa de um imenso mercado.

E “Tittytainment”, sabe o que é? Eu digo-lhe: é um curioso neologismo criado por Zbigniew Brzezinski a partir das palavras “entertainment” (entretenimento) e “tits” (tetas em calão americano). Não, não é um convite ao sexo, mas sim ao entretenimento embrutecedor (tv sobretudo) e a uma alimentação suficiente (metáfora das tetas que dão leite), com o propósito de manter a boa disposição da população frustrada deste planeta globalizado. Isto porque se espera que, neste século, “duas décimas da população activa cheguem para manter a actividade da economia mundial”. O que fazer, então, das oito décimas restantes, para evitar o dilema “to have lunch or be lunch” (ter de comer ou ser comido)? Pois, recorrer ao “Tittytainment”, para que todos os excluídos se mantenham tranquilos. “Pão e circo”, em suma, como na antiga Roma Imperial…

Esta é a nova ordem social que os poderosos desejam impor-nos: um universo de países ricos sem classe média digna desse nome. Está agora a acontecer e foi previsto há 15 anos num livro escrito por dois jornalistas da revista alemã “Der Spiegel”, Hans-Peter Martin e Harald Schumann: “A armadilha da mundialização. A agressão contra a democracia e a prosperidade”. Vale a pena reler (aconselha o nosso “garganta funda”). A receita é sempre a mesma: diminuir as despesas do Estado, baixar os salários, cortar nas prestações sociais, nos abonos de família, nos subsídios de férias, de desemprego e de doença, segundo um modelo de austeridade rígido, acompanhado de privatizações e desmantelamento sistemático do Estado. Então e o “Tittytainment”?

Calma, uma coisa de cada vez! Agora estamos em depressão (em sentido amplo, diz BMW) e a depressão é uma pré-condição da prosperidade, tal como a prosperidade há-de conduzir-nos outra vez à depressão. São os altos e baixos de um sistema em crise permanente. Os economistas neoliberais ao serviço do FMI e das grandes empresas (que ‘oficiam’ na televisão sem fazerem qualquer declaração de interesses e apresentando-se como meros técnicos de alto coturno) não sabem nem querem raciocinar de outro modo: “There Is No Alternative”. TINA é a grande paixão! Impressiona-me a quantidade de economistas reaccionários formados pelo vosso ISEG, que se orgulham das estadias no (e do) FMI e se encostam aos partidos políticos que alternam no poder!

BMW está indignado. Foram vãos os esforços para atenuar as brutais medidas de austeridade, contraditórias e insensatas do ponto de vista económico: como crescer com políticas recessivas? Culpa dos credores, que querem vergar à viva força os devedores. É estupidez rematada, mas o FMI e o BCE só têm olhos para os credores!

«Expresso» de 28/Maio/2011

(*) Ludovico Agrícola é um pseudónimo de Alfredo Barroso

FMI, TRAVESTI, 'FACEBOOK' E SECOND LIFE

Por Ludovico Agrícola (*)

PELA PRIMEIRA VEZ desde que encetámos esta parceria de espionagem e comadrice em nome da verdade e da transparência (fica sempre bem falar assim em momentos tão graves e funestos), o Prof. Bretton Manning Woods (BMW), técnico multidisciplinar ao serviço do FMI, proporcionou-me a leitura de um excerto de um telegrama cifrado que Mister Blue Eyes enviou a Monsieur Dominique Strauss-Kahn, pouco antes da troika ir de férias para a Grécia, onde as coisas vão de mal a pior. O excerto reza assim:

«Falso alarme. Belle Dominique não é uma campanha jocosa contra o director-geral do FMI. É um artista português, hoje com 60 anos, que está a comemorar 35 anos de actuações como travesti, com espectáculos às sextas numa sociedade recreativa. Foi vedeta em clubes nocturnos que já desapareceram e num filme que entrou directamente para a história do cinema europeu: ‘Aventuras e Desventuras de Julieta Pipi’.

«É certo que se vestiu de prostituta envolta numa bandeira nacional, quando o FMI interveio em Portugal pela primeira vez. Mas é altamente improvável que repita a brincadeira. Até porque, como ele próprio diz, ‘o homem português é passivo e pouco corajoso’. Aliás, a campanha a favor desta nova intervenção, insistindo em que ‘o FMI não é nenhum papão’, foi levada a cabo por políticos e economistas de alto coturno, que sabem como alimentar o conformismo e a resignação do povo português.

«Saliento, além disso, que a nova reputação de bom samaritano generosamente atribuída ao FMI também resulta da taxa de juro cobrada por nós (3,25 %), mais baixa do que a cobrada pela UE (5,7%). Felizmente, a opinião pública ainda não percebeu que se trata de taxas diferentes, e que a nossa taxa pode trepar até aos 7% ou 8% em resultado da mais que provável subida das taxas de juro nos próximos anos».

Que cinismo! E que perversidade (exclamei eu, atormentado por tão excruciante leitura)! Claro que este telegrama é anterior ao novo acesso de priapismo do impetuoso director-geral do FMI, que desta vez foi mesmo parar à cadeia e está metido num lindo sarilho. Mas não sei se isso vai mudar alguma coisa deste lado do mar salgado.

Claro que não vai mudar nada (atalhou BMW)! E que poético que você está, caro Ludovico! Ainda vou vê-lo a cantar baladas e a tocar pífaro, no meio desse frenesi eleitoral em que o seu país está mergulhado. Mas você bem sabe que os tempos não são propícios a jucundos folguedos! Leu no Facebook a nova declaração do vosso PR? Num estilo de fazer inveja a Pangloss, acha que a execução do acordo «será muito exigente», e que «Portugal tem agora a responsabilidade de honrar os compromissos assumidos e encontrar um espaço para a justiça social e o desenvolvimento económico».

Li pois! E já dei por mim a imaginar um grupo de jovens de aspecto rebarbativo, crânios rapados e gengivas cor-de-laranja (que até poderiam chamar-se ‘Os Fedelhos de Catroga’ em honra do degredado), a roubar retroescavadoras e outra maquinaria para escavacar auto-estradas e obras públicas a mais, e encontrar assim o espaço sugerido por Cavaco no Facebook. Se as auto-estradas não derem, há-de arranjar-se algum espaço no ambiente virtual e tridimensional do Second Life! É só simular no computador!

«Expresso» de 21/Maio/2011

(*) Ludovico Agrícola é um pseudónimo de Alfredo Barroso

segunda-feira, 18 de julho de 2011

UMA 'TROIKA' SEM CORAÇÃO

Por Ludovico Agrícola (*)

COMPREENDO que queiram curtir a bisbilhotice da troika até ao tutano (disse BMW) mas não se iludam, a troika não tem coração, é tão esfíngica e desapiedada como o triângulo das Bermudas. Os triúnviros mais parecem andróides do que seres humanos, fazem-me lembrar o protagonista de um conto de Philip K. Dick, o sr. Garson Poole, que descobriu, às tantas, que a sua realidade consistia em fita perfurada a passar de bobina em bobina no interior do seu tórax. ‘The Electric Ant’ foi publicado em 1969.

Neste conto, porém (prosseguiu BMW), o andróide acaba por perfurar totalmente a fita, e o seu mundo, tal como o dos outros personagens, desaparece. Não é esse o caso das criaturas que constituem a troika, cuja função é fazer desaparecer, tão-somente, os vestígios de sangue causados pelos mercados financeiros e pelas agências de rating, obrigando as vítimas a pagar com juros.

Em ‘Pulp Fiction’, a fita de Tarantino, há um personagem semelhante, Winston ‘The Wolf’ Wolfe (Harvey Keitel), que vem limpar o sangue e os miolos espalhados pelos estofos do automóvel em que um tipo foi morto a tiro por lapso. Quando lhe perguntam o que faz na vida, Wolfe responde: ‘I solve problems’. Mais concisa é a resposta de ‘Léon’ (Jean Reno), na fita de Luc Besson. Quando a serigaita que ele se sente obrigado a proteger lhe pergunta pela profissão, Léon responde: ‘Cleaner’.

Como vê, meu caro Ludovico, já chegámos ao mundo da ficção, no qual se encaixa melhor o mundo da política. Aqui há sempre quem reclame grandes barrelas, mas quem quer limpar é, regra geral, pior do que quem sujou. A política não é um reino de andróides e gangsters. É, sobretudo, um mundo de gigantes e anões, em que os gigantes escasseiam (se é que não desapareceram de todo) e os anões proliferam como os coelhos.

Os meus amigos Fradique e Cassandra Silva, de quem fui vizinho em Colares, dizem-me que, por cá, já há quem não distinga entre ‘O Príncipe’ de Maquiavel e ‘O Principezinho’ de Saint-Éxupéry. Paradoxalmente, os únicos que terão lido o florentino de fio a pavio - Portas e Louçã - são os que mais parecem oriundos do asteróide B 612. Fradique, anticomunista primário, trata o secretário-geral do PCP por pitecantropos Jerónimo mas reconhece que ele diz, muitas vezes, verdades duras como punhos fechados.

Sócrates e Passos Coelho também lhes merecem sérias reservas. Não entendem como é possível que o chefe do PPD seja tratado como o ‘Obama de Massamá’ e ficam espantados com a dupla que ele faz com o ‘brigadeiro escarlate’, Eduardo Catroga. Quanto a Sócrates, a minha amiga Cassandra, mais subtil e menos reaccionária que Fradique, acha que, se ele vivesse no tempo dos Plantagenetas, teria a mesma sorte que Ricardo II, tal o ódio que suscitou nos adversários. Mas por cá ninguém se magoa, diz ela.

Já os andróides da troika (acrescento eu) consideram que o nosso estilo bombástico e lapidar só é bom para fazer inchar anões. E presumem que os gigantes estarão a olhar cá para baixo, para esta pequena comédia, e a rir.

Thomsen, Kröeger, Rüffer, benditos sejam! E o nosso Durão Barroso também!

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«Expresso» de 14/Maio/ 201

(*) Ludovico Agrícola é um pseudónimo de Alfredo Barroso

A DIVISÃO FAZ A FORÇA!

Por Ludovico Agrícola (*)

CARO LUDOVICO, não se deixe iludir pelo optimismo caudaloso de José Sócrates nem pela jucunda vacuidade de Passos Coelho, disse-me BMW. E acrescentou: Se não executarem a partitura nota à nota, o garrote financeiro esborracha-vos a maçã de Adão enquanto o diabo esfrega um olho.

BMW, ou Bretton Manning Woods, é o pseudónimo de um reputado técnico multi-disciplinar do FMI, membro da equipa de apoio à troika que veio a Lisboa tratar-nos da saúde. Viveu em Colares um bom par de anos, fala fluentemente português e admira tanto a campanha alegre de Eça de Queiroz como as cenas da vida diplomática de Lawrence Durrell.

Keynesiano fanático, BMW nasceu no dia (21/Abril/1946) em que o grande John Maynard (1,98 m) morreu. Detesta o Consenso de Washington e tem saudades do acordo de Bretton Woods. O outro apelido homenageia o jovem soldado raso Bradley Manning, hacker bostoniano que foi parar com os costados à cadeia de alta segurança de Quântico (Virgínia), por ter passado paletes de telegramas e vídeos confidenciais à WikiLeaks.

Aceitou sem pestanejar o papel de ‘garganta funda’ desde que também eu adoptasse um pseudónimo. Assim fiz: Ludovico Agrícola (dos Agrícolas de Trás-os-Montes). E aqui estou a servir de go-between. Mas avisei-o de que teríamos de ser espartanos porque só dispomos de três mil caracteres. Nada mau, replicou ele, tendo em conta que este país está a transformar-se numa república a pão e água para a grande maioria da população.

BMW disse-me do espanto que tem causado na troika a exuberância rubicunda de Eduardo Catroga, núncio de Cavaco na S. Caetano à Lapa e mentor programático de PPC. Espuma de raiva e parece apostado em imitar os Navy Seals da Team 6: capturar, matar e atirar ao mar José Sócrates como fizeram ao Bin Laden. Mas BMW inclina-se mais, com razão, para a figura do «portuguesinho valente», estilo «ó Evaristo tens cá disto» d’O Pátio das Cantigas. Insultam-se muito uns aos outros mas ninguém se magoa.

Também acharam graça ao facto de Mário Soares ter transformado Passos Coelho num melão a concurso. Disse MS, sobre as capacidades de PPC para ser PM: «É como os melões, só depois de aberto é que se sabe». Mas acrescentou que é um melão «muito sensato, lúcido e com um grande sentido de Estado». Sócrates amarinhou pelas paredes do Rato, mas disse aos seus camaradas que MS e o PSD vão ficar com um grande melão.

Perplexos ficaram ainda quando o presidente da CIP, António Saraiva, acusou o Governo de laxismo por conceder tolerância de ponto pascal, ao saberem que o patrão dos patrões também a concedeu aos seus funcionários para «ter ganhos em termos energéticos e de transportes» (sic). Mister Blue Eyes (FMI), tão imperturbável como um faquir numa cama de pregos, disse baixinho: Com patrões assim a direita portuguesa não vai longe.

Entretanto, PPC diz que não assina de cruz, não sabemos ao certo se Kaitanen garantirá o voto finlandês em Bruxelas, e o país ainda não ouviu todos os seus geniais ex-ministros das Finanças. A divisão faz a força!

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«Expresso» de 07/Maio/2011

(*) Ludovico Agrícola é um pseudónimo de Alfredo Barroso

sexta-feira, 10 de junho de 2011

UMA ESQUERDA À DERIVA

A PERGUNTA, dirigida aos partidos da extrema-esquerda parlamentar, impõe-se: quanto pior, melhor? Se era isto que pretendiam o BE e o PCP, ao colaborarem com os partidos da direita no derrube do governo do PS, Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa bem podem limpar as mãos à parede. Fizeram um lindo serviço.


A história repetiu-se 35 anos depois. Já em 1976, os mesmos «irmãos inimigos», PCP e UDP (hoje escondida no BE), juntaram os seus votos aos do PPD e do CDS para derrubar o primeiro governo do PS. Seguiram-se uma efémera coligação PS-CDS, três governos de «iniciativa presidencial» e três governos da AD que levaram o país à beira da bancarrota – evitada pelo governo do «bloco central» (PS-PPD).

Nada disto pode isentar de responsabilidades a governação do PS nestes últimos seis anos. Uma governação cujas políticas públicas foram condicionadas desde o início pelos dogmas neoliberais. Uma governação caracterizada, nos últimos três anos, pela incapacidade de previsão de um ministro das Finanças que, entretanto, se desvaneceu no éter, mas em breve irá ressurgir como herói, para enriquecer a galeria dos 18 geniais ministros das Finanças que o antecederam. É que, neste país em crise, o estatuto de ex-ministro das Finanças, ex-ministro da Economia ou ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, do Orçamento ou do Tesouro, é sempre uma garantia de qualidade.

De facto, nunca tantos portugueses ficaram a «dever» tanto, em tão pouco tempo, a tantos ministros das Finanças e da Economia (e respectivos secretários de Estado)! A televisão, a rádio e os jornais encarregam-se de o lembrar, convidando-os a explicarem ao povo o que deve ser feito (e eles não fizeram) e as receitas infalíveis (que eles não aplicaram) para vencer a crise. Os portugueses até elegeram um deles Presidente da República, por lhes ter prometido que, com ele em Belém, o país nunca chegaria ao ponto a que chegou. Mesmo assim, já foi reeleito, e os seus pares (oriundos, sobretudo, do ISEG) proliferam ao serviço da banca, dos grandes grupos económicos e, claro, dos governos.

José Sócrates saiu bem. E saiu-se bem no seu discurso de renúncia ao poder, na desoladora noite eleitoral. A vacuidade prazenteira do vencedor só o ajudou. Tal como a cegueira política evidenciada pelos chefes da extrema-esquerda. Jerónimo de Sousa está muito «contentinho da silva» porque o PCP conquistou mais um deputado – e a derrocada da esquerda pouco lhe importa enquanto a longevidade dos seus militantes lhe garantir o estatuto de Astérix na pequena aldeia comunista. No BE, entre a patética Aiveca, a abrir a noite pós-eleitoral, a sisuda Drago, a botar sentenças, e o perspicaz Louçã, a reconhecer a derrota (o BE cai de 16 para 8 deputados), grita-se: «A luta continua!», mas o partido vai mergulhar numa «reflexão profunda», porventura tão profunda como o abismo para onde o BE ajudou a empurrar uma esquerda cada vez mais à deriva.

Derrotado sem apelo por uma abstenção inacreditável (41,1 %), pela irresponsabilidade da extrema-esquerda e pela incapacidade para gerir esta gravíssima crise, o PS tem agora pela frente uma longa travessia do deserto em busca da recuperação política e ideológica. Tal como Cavaco durante os dez anos em que chefiou o PPD, também Sócrates se comportou, no PS, como um eucalipto que seca tudo à sua volta. Proliferam hoje, no aparelho partidário, jovens burocratas, tecnocratas e oportunistas, sem convicções e com muita ambição, que estão dispostos a servir quem não ponha em causa os seus pequenos poderes. Esse vai ser o maior obstáculo à regeneração política e ideológica do PS.

Quanto à direita, a maioria absoluta que conquistou, em coligação pós-eleitoral (PPD-CDS), permite-lhe tentar pôr em prática as receitas letais da troika FMI-BCE-UE, e até ir mais longe na ânsia de privatizações e desmantelamento do Estado já demonstrada pelo discípulo do engenheiro Ângelo Correia que nos coube em sorte. Só falta mesmo que reapareçam Catroga e Leite Campos, para nos tratarem da saúde financeira e fiscal. Aguentem-se à bronca, cidadãos, que isto vai doer muito!

«i» de 7 Jun 11