AS ESQUERDAS NO MUNDO - A crise da social-democracia europeia
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Publicado no «Le Monde Diplomatique», edição em português, de Novembro de 2011.
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A crise em que o neoliberalismo cada vez mais mergulha a Europa vai exigir respostas que convocam as sociedades como um todo, do movimento sindical e popular ao associativismo e às comunidades locais, dos espaços informais de debate à participação em todas as estruturas criadas pelo poder democrático local ou nacional. O sistema partidário, base da representação democrática, é um dos palcos onde se joga parte importante da reflexão e das escolhas políticas e ideológicas que poderão traduzir-se, ou não, na reabilitação da democracia, na defesa do Estado social e no combate às oligarquias financeiras que minam as finalidades igualitárias e universalistas que ainda se afiram nas sociedades. Em Portugal como noutros países europeus, de que lado vão colocar-se os partidos da Internacional Socialista, que se reivindicam da social-democracia?
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FACE À GRAVÍSSIMA crise em que a Europa está mergulhada desde 2008, é preocupante constatar a incapacidade dos partidos membros da Internacional Socialista (IS) para formular e apresentar propostas políticas, económicas e sociais que constituam verdadeiras alternativas às políticas neoliberais que estão a corroer a democracia, o Estado social e a própria União Europeia
Não é um problema exclusivamente grego ou português. É um problema que afecta toda a social-democracia europeia. E a questão é esta: como explicar que o evidente fracasso do neoliberalismo – que vem desencadeando, há mais de uma década, crises económicas e financeiras cada vez mais graves – não tenha provocado uma forte reacção política e um sobressalto ideológico dos partidos da esquerda europeia que alternam no poder com partidos de direita?
A resposta não é difícil de encontrar. Através de uma metamorfose a que Antonio Gramsci chamou «transformismo», a maioria dos partidos da Internacional Socialista foi-se tornando, sobretudo a partir da última década do século XX, uma «variante social-democrata do neoliberalismo», tal como o thatcherismo se tornara uma «variante neoliberal do conservadorismo clássico».
Princípios e valores como a igualdade, a solidariedade e a universalidade – que constituíam a base do compromisso histórico da social-democracia – foram sendo substituídos por palavras de ordem tão apelativas e equívocas como: «criação de riqueza», «reforma» e «modernização».
No vocabulário dos partidos da IS passaram a predominar termos de cariz ideológico claramente conservador. Por exemplo: «equidade» e «livre escolha», «indivíduo» e «família». Como que fazendo-se eco da sentença proferida em 1987 pela «papisa» do neoliberalismo, Margaret Thatcher: «Sociedade é coisa que não existe. Só o indivíduo e a família existem». E como se os mais pobres pudessem usufruir da «livre escolha» numa sociedade totalmente mercantilizada, dominada pelo poder do dinheiro, pela ganância e pelo lucro.
Agitando a bandeira da «modernização» – empunhada, a partir do final do século XX, por Tony Blair («New Labour») e Gerhard Schröder («Novo Centro») – os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas europeus optaram por identificar-se apenas com as classes médias, desinteressando-se de representar também os interesses das classes baixas, cujas reivindicações foram consideradas «arcaicas» ou «retrógradas». Não surpreende que os partidos populistas de direita e extrema-direita tentem explorar esse terreno vago.
Começou então a ser recorrente o discurso justificativo da famosa «terceira via», com afirmações do género: «as diferenças entre a esquerda e a direita são obsoletas»; «não há alternativa à globalização neoliberal»; «nada temos contra quem consegue acumular grandes fortunas». Para Tony Blair, este era um sinal identificador da chamada «esquerda moderna», que dizia representar.
A social-democracia contribuiu, assim, para a «colonização» da sociedade civil por uma espécie de «senso comum neoliberal», bem patente nos vocábulos, nos conceitos e no discurso produzidos pelas elites dirigentes.
A «empresa» passou a ser o novo modelo do Estado, tal como a «gestão empresarial» o novo modelo de direcção dos organismos estatais. O sector público passou a ser considerado, por definição, ineficaz e ultrapassado – designadamente «por visar objectivos sociais que vão muito para além da estrita eficácia económica e da rentabilidade». Para os neoliberais, mesmo o Estado exíguo só pode salvar-se se cumprir religiosamente as regras que o mercado impõe.
O «homem de negócios» e o «empreendedor» foram elevados à categoria de heróis e exemplos a seguir, e o «empreendedorismo» passou a ser um termo recorrente no discurso dos políticos e tecnocratas que alternam no poder.
A CHAMADA «esquerda moderna» foi-se aproximando, assim, da «nova direita», claudicando perante a hegemonia das ideias ultraliberais.
Esta hegemonia é justificada, no discurso neoliberal, pelo «desabrochar de um novo individualismo», pelo «advento da nova sociedade pós-industrial», pela «revolução tecnológica», pela luta do capital em prol do seu direito a gerir o mundo e pela globalização da economia internacional (que foi o meio encontrado pelo capital para se expandir e sair do impasse em que se encontrava) – como salienta o sociólogo Stuart Hall, nos ensaios que escreveu sobre o «populismo autoritário» de Margaret Thatcher e de Tony Blair.
Recorrendo a outra ferramenta conceptual gramsciana, é fácil constatar que estamos perante um exemplo de «hegemonia cultural», que a direita foi impondo e consolidando para melhor controlar o poder político. Essa hegemonia foi obtida graças ao apoio do poder económico e financeiro e à enorme pressão que este exerce, quer sobre os mais importantes órgãos de comunicação social (que lhe pertencem), quer sobre os partidos políticos dominantes (que financia).
Constituiu-se, assim, parafraseando Antonio Gramsci, um «bloco histórico» dominado pelos partidos da direita neoliberal, que arrastam atrás de si os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas.
Os partidos membros da IS tornaram-se uma espécie de organismos híbridos constituídos por duas tendências: a tendência neoliberal, que ocupa a posição dominante, sobretudo quando o partido está no governo, e que se traduz, basicamente, na aceitação do fundamentalismo do mercado; e a tendência social-democrata, subordinada e marginal, cujo objectivo essencial é conservar apoios da esquerda tradicional, sobretudo quando se aproximam eleições.
Esta duplicidade implica o recurso a várias habilidades retóricas, para tentar iludir a óbvia contradição entre as duas tendências e tentar disfarçar a dimensão subalterna das propostas social-democratas nos programas políticos apresentados ao eleitorado. Os termos «modernização» e «reforma» tornaram-se recorrentes, tanto no discurso dos social-democratas como no dos neoliberais.
Stuart Hall identificou os principais objectivos dessa «reforma» considerada «modernizadora»: abrir a via aos investimentos privados e tornar cada vez mais difusa a distinção entre público e privado; cumprir à risca os critérios de eficácia e rentabilidade impostos pelo mercado; instalar a autoridade do gestor empresarial (o manager) aos comandos da administração pública; reformar as práticas do trabalho acentuando a sua individualização; incitar os assalariados a concorrerem uns contra os outros através de instrumentos de motivação financeiros que minam a negociação colectiva; «quebrar a espinha» aos sindicatos diminuindo o seu poder reivindicativo; reduzir drasticamente os efectivos e os custos dos serviços públicos; colocar e/ou manter os salários do sector público abaixo dos salários do sector privado; reorganizar os serviços segundo o princípio do funcionamento «a duas velocidades», através da chamada «selectividade».
Assim se tenta constituir, por exemplo, um serviço nacional de saúde e um ensino «a duas velocidades»: uma para os ricos, livres de escolher entre público e privado, e capazes de desenvolver os seus próprios sistemas privados de saúde e de formação escolar (diminuindo o contributo para a sustentabilidade dos sistemas públicos); outra para os pobres, abandonados à sua sorte, impotentes perante o esvaziamento dos cofres públicos, o fim da protecção social, do salário mínimo, do direito ao trabalho e à sua duração fixada na lei. Isto em detrimento dos princípios basilares da solidariedade, igualdade e universalidade. E abrindo caminho para, por exemplo, tornar a saúde um dos sectores mais lucrativos para o investimento privado, através da construção e gestão de hospitais públicos.
Seguindo o exemplo do «blairismo», a comunicação política tem sido a arma fundamental dos partidos da IS, na tentativa de conciliar o inconciliável e de justificar o injustificável – como, por exemplo, a pesca à linha que têm vindo a fazer nos programas políticos da direita neoliberal, com o objectivo de conquistar votos no «grande centro» ou «centrão». Trata-se de «envernizar», recorrendo à retórica, propostas políticas neoliberais, tornando-as mais atractivas aos olhos dos seus eleitores tradicionais: classes médias e classes populares.
Reduzindo a política à comunicação e à gestão da opinião, para seduzir os diferentes públicos, vários partidos da IS terão conseguido realizar efemeramente a quadratura do círculo, conquistando muitos votos ao centro e à direita, mas terão perdido seguramente a alma e a coerência ideológica e política. Tal mudança não foi só em direcção ao «centro». Foi sobretudo em direcção ao chamado «centro do centro», afastando-se assim esses partidos da sua caracterização, aliás bastante discutível, como partidos de centro-esquerda.
O «centro do centro» corresponde àquilo a que Maurice Duverger chamou o «juste milieu». É evidente que ele tinha razão quando afirmou, há mais de 40 anos, no livro intitulado La Démocratie sans le peuple (publicado em 1967), o seguinte: «O centrismo favorece a direita. Aparentemente, as coligações do “juste milieu” são dominadas, ora pelo centro-direita, ora pelo centro-esquerda, seguindo uma oscilação de fraca amplitude. (…) Estas aparências mascaram uma realidade completamente diferente. Por trás da ilusão de um movimento pendular, o centro-direita domina quase sempre. (…) Em vez de implicar uma transformação lenta mas regular da ordem existente, a conjunção dos centros desemboca no imobilismo, ou seja, no triunfo da direita».
O «centro do centro» é, pois, um território propício a renúncias ideológicas e abdicações políticas, invocados os superiores interesses da Nação, do País ou do Estado, consoante a carapuça que cada partido queira enfiar.
ANTONIO Gramsci dizia que «a crise é quando o que é velho está a morrer e o que é novo não consegue nascer». Estamos a assistir à agonia do capitalismo financeiro, que pode ser longa e ter consequências ainda mais devastadoras, mas a social-democracia continua em estado de letargia ideológica e política, quando dela seria legítimo esperar a formulação de propostas diferentes e inovadoras, claramente distintas do neoliberalismo vigente.
Os partidos da IS deviam promover a crítica do individualismo dominante e reabilitar os valores da solidariedade, igualdade e universalidade, ferramentas conceptuais indispensáveis à formulação das políticas públicas. Deviam combater o cepticismo e a desconfiança em relação à social-democracia, cujo papel histórico corre o risco de ser ultrapassado pelo sentimento generalizado entre os cidadãos de que não há alternativa, de que não podem influir no curso dos acontecimentos porque os mecanismos democráticos já não conseguem funcionar sob o peso de uma necessidade histórica e económica esmagadora.
A social-democracia europeia não devia apresentar-se ao eleitorado como mera alternativa formal, tão-só capaz de gerir menos mal ou de gerir melhor que a direita neoliberal. Devia apresentar propostas políticas inovadoras e mobilizadoras, incutindo nos cidadãos confiança na capacidade de regeneração das sociedades democráticas e inculcando neles o sentimento de que continua a ser possível fazer escolhas democráticas claramente diferenciadas.
Jacques Attali, que está longe de ser suspeito de esquerdismo, escreveu há poucas semanas no L’Express que já há quem reconheça que «esta crise foi consequência do enfraquecimento da parte dos salários no valor acrescentado».
Declaração surpreendente, vinda de quem vem. Mas Attali ainda foi mais longe. Contrariando os adeptos da chamada «globalização feliz», ousou afirmar que, «se a diminuição do custo do trabalho fosse o factor-chave para sair vencedor da competição internacional, então o Haiti e o Bangladeche seriam os grandes campeões da globalização». Este reconhecimento tardio, verdadeiro «acto de contrição», vai claramente contra a teoria dominante da austeridade salarial, que continua a ser aplicada sem contemplações. Mas Attali não está só.
Num documento de trabalho (working paper) sobre «Endividamento e desigualdades», datado de Dezembro de 2010, encomendado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e coordenado por dois economistas – Michael Kumhof e Roman Rancière – pode ler-se o seguinte: «Restabelecer a igualdade redistribuindo os rendimentos dos ricos pelos pobres, não agradaria só aos Robin dos Bosques do mundo inteiro; poderia também poupar à economia mundial uma nova crise de grandes proporções».
Em entrevista recente, Rancière reafirma que uma das grandes alavancas da luta contra o crescimento das desigualdades consiste, pura e simplesmente, no aumento dos salários das classes médias e baixas. E acrescenta: «Imposta ou negociada, a recuperação dos rendimentos dos trabalhadores é a mais segura das respostas para evitar a recaída nos diversos problemas que conduziram à crise. Sem o que, como mostra o nosso estudo, há fortes probabilidades de voltarmos a ser confrontados com o mesmo cenário» (Marianne, 25 de Junho de 2011).
Todavia, não são soluções como esta que se divisam no horizonte da crise. Aquilo a que assistimos é a mais cortes nos salários, ao aumento do desemprego (que dá vantagem aos patrões nas negociações salariais) e a uma concorrência cada vez mais feroz dos países emergentes, a par da desindustrialização de vários países da eurozona. O que significa, conforme salienta o economista Patrick Artus, que «os países da OCDE já conhecem ou vão conhecer uma travagem ou mesmo uma diminuição dos salários» no futuro imediato.
Artus afirma, aliás, que a Europa nada ganhará em alinhar numa política de «hipercompetitividade por compressão salarial», como a que pratica a Alemanha. Porque a União Europeia não pode ser um conjunto de Alemanhas, e porque, se os salários baixarem em todos os países europeus, nenhum conseguirá conquistar partes de mercado e todos sofrerão um recuo no consumo. Pior ainda: «reduzir os salários não melhora significativamente a competitividade em relação aos países emergentes, dada a enorme diferença de custos de produção entre estes países e os da OCDE [Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico]». Seria, portanto, um sacrifício inútil.
O FUTURO da social-democracia depende muito da correcta interpretação destes sinais. Um novo paradigma não pode ser construído a partir de políticas de austeridade brutais, que contribuem para aumentar as desigualdades, a pobreza e o desemprego. Tem de ser construído com base em soluções que contribuam para atenuar os sacrifícios dos cidadãos e evitar a deflagração de novas crises. Nesta perspectiva, há vários instrumentos que são incontornáveis.
Desde logo, a recuperação dos rendimentos dos trabalhadores, associada a outras alavancas essenciais da luta contra as desigualdades, designadamente: um forte aumento da progressividade do imposto sobre os rendimentos, erradicando os nichos fiscais em que os mais ricos costumam refugiar-se; e um controlo eficaz dos movimentos de capitais, através, por exemplo, da aplicação da taxa Tobin sobre as transacções financeiras, que a alta finança considera uma verdadeira bomba, de que nem quer ouvir falar. Sem um controlo efectivo da globalização, designadamente dos movimentos de capitais, será muito difícil, se não impossível, reduzir as desigualdades salariais.
Também é essencial combater a corrupção, a fraude e a evasão fiscais, com instrumentos legais e meios materiais e humanos adequados, que tornem esse combate eficaz. Além disso, é indispensável impor fortes restrições na esfera financeira, cuja hipertrofia se alimenta do negocismo sem freio e do excesso de rendimentos e bonificações de que beneficia uma ultra-elite.
Será muito difícil revolucionar ou reformar a social-democracia num só país. Por isso a Internacional Socialista devia promover a elaboração de uma espécie de programa comum da social-democracia, que seria um documento orientador dos programas dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas, naturalmente distintos entre si e adaptados às realidades nacionais.
Os partidos da IS têm de libertar-se da canga ideológica da «terceira via», da influência nociva do «blairismo» e da ilusão de que existe um «novo centro». Têm de renovar os discursos, refazer os programas e ancorar as novas propostas políticas em valores tão basilares como a soberania popular, a igualdade entre os cidadãos, a universalidade de direitos e a solidariedade social.
O objectivo da social-democracia tem de ser o desenvolvimento humano, a justiça social e o bem-estar da maioria dos cidadãos através da justa redistribuição das riquezas, da garantia de sustentabilidade dos serviços públicos essenciais (Educação, Saúde, Segurança Social), da defesa do Estado democrático e dos direitos, liberdades e garantias fundamentais em que ele assenta.
Parafraseando o título de um artigo de Joseph Stiglitz, o neoliberalismo é «o triunfo da cupidez». Os neoliberais são as famosas raposas de Lacordaire, à solta num galinheiro sem rede. As «reformas» que reclamam visam sobretudo satisfazer a cupidez dos plutocratas e a ganância das oligarquias financeiras.
Alguém lembrou que, tal como Jesus Cristo anunciou o reino de Deus e foi a Igreja que apareceu, também o capitalismo anunciou o reino da Liberdade e foi a oligarquia financeira que apareceu (e a plutocracia que se instalou no poder).
Moral da história: não é descurando a protecção dos galinheiros que se afugentam as raposas. Qualquer alternativa de esquerda ao neoliberalismo passa pela recuperação e renovação ideológica dos partidos da Internacional Socialista, pelo combate às oligarquias financeiras e pela reabilitação da democracia.
Não é um problema exclusivamente grego ou português. É um problema que afecta toda a social-democracia europeia. E a questão é esta: como explicar que o evidente fracasso do neoliberalismo – que vem desencadeando, há mais de uma década, crises económicas e financeiras cada vez mais graves – não tenha provocado uma forte reacção política e um sobressalto ideológico dos partidos da esquerda europeia que alternam no poder com partidos de direita?
A resposta não é difícil de encontrar. Através de uma metamorfose a que Antonio Gramsci chamou «transformismo», a maioria dos partidos da Internacional Socialista foi-se tornando, sobretudo a partir da última década do século XX, uma «variante social-democrata do neoliberalismo», tal como o thatcherismo se tornara uma «variante neoliberal do conservadorismo clássico».
Princípios e valores como a igualdade, a solidariedade e a universalidade – que constituíam a base do compromisso histórico da social-democracia – foram sendo substituídos por palavras de ordem tão apelativas e equívocas como: «criação de riqueza», «reforma» e «modernização».
No vocabulário dos partidos da IS passaram a predominar termos de cariz ideológico claramente conservador. Por exemplo: «equidade» e «livre escolha», «indivíduo» e «família». Como que fazendo-se eco da sentença proferida em 1987 pela «papisa» do neoliberalismo, Margaret Thatcher: «Sociedade é coisa que não existe. Só o indivíduo e a família existem». E como se os mais pobres pudessem usufruir da «livre escolha» numa sociedade totalmente mercantilizada, dominada pelo poder do dinheiro, pela ganância e pelo lucro.
Agitando a bandeira da «modernização» – empunhada, a partir do final do século XX, por Tony Blair («New Labour») e Gerhard Schröder («Novo Centro») – os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas europeus optaram por identificar-se apenas com as classes médias, desinteressando-se de representar também os interesses das classes baixas, cujas reivindicações foram consideradas «arcaicas» ou «retrógradas». Não surpreende que os partidos populistas de direita e extrema-direita tentem explorar esse terreno vago.
Começou então a ser recorrente o discurso justificativo da famosa «terceira via», com afirmações do género: «as diferenças entre a esquerda e a direita são obsoletas»; «não há alternativa à globalização neoliberal»; «nada temos contra quem consegue acumular grandes fortunas». Para Tony Blair, este era um sinal identificador da chamada «esquerda moderna», que dizia representar.
A social-democracia contribuiu, assim, para a «colonização» da sociedade civil por uma espécie de «senso comum neoliberal», bem patente nos vocábulos, nos conceitos e no discurso produzidos pelas elites dirigentes.
A «empresa» passou a ser o novo modelo do Estado, tal como a «gestão empresarial» o novo modelo de direcção dos organismos estatais. O sector público passou a ser considerado, por definição, ineficaz e ultrapassado – designadamente «por visar objectivos sociais que vão muito para além da estrita eficácia económica e da rentabilidade». Para os neoliberais, mesmo o Estado exíguo só pode salvar-se se cumprir religiosamente as regras que o mercado impõe.
O «homem de negócios» e o «empreendedor» foram elevados à categoria de heróis e exemplos a seguir, e o «empreendedorismo» passou a ser um termo recorrente no discurso dos políticos e tecnocratas que alternam no poder.
«Esquerda moderna» e «nova direita»
A CHAMADA «esquerda moderna» foi-se aproximando, assim, da «nova direita», claudicando perante a hegemonia das ideias ultraliberais.
Esta hegemonia é justificada, no discurso neoliberal, pelo «desabrochar de um novo individualismo», pelo «advento da nova sociedade pós-industrial», pela «revolução tecnológica», pela luta do capital em prol do seu direito a gerir o mundo e pela globalização da economia internacional (que foi o meio encontrado pelo capital para se expandir e sair do impasse em que se encontrava) – como salienta o sociólogo Stuart Hall, nos ensaios que escreveu sobre o «populismo autoritário» de Margaret Thatcher e de Tony Blair.
Recorrendo a outra ferramenta conceptual gramsciana, é fácil constatar que estamos perante um exemplo de «hegemonia cultural», que a direita foi impondo e consolidando para melhor controlar o poder político. Essa hegemonia foi obtida graças ao apoio do poder económico e financeiro e à enorme pressão que este exerce, quer sobre os mais importantes órgãos de comunicação social (que lhe pertencem), quer sobre os partidos políticos dominantes (que financia).
Constituiu-se, assim, parafraseando Antonio Gramsci, um «bloco histórico» dominado pelos partidos da direita neoliberal, que arrastam atrás de si os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas.
Os partidos membros da IS tornaram-se uma espécie de organismos híbridos constituídos por duas tendências: a tendência neoliberal, que ocupa a posição dominante, sobretudo quando o partido está no governo, e que se traduz, basicamente, na aceitação do fundamentalismo do mercado; e a tendência social-democrata, subordinada e marginal, cujo objectivo essencial é conservar apoios da esquerda tradicional, sobretudo quando se aproximam eleições.
Esta duplicidade implica o recurso a várias habilidades retóricas, para tentar iludir a óbvia contradição entre as duas tendências e tentar disfarçar a dimensão subalterna das propostas social-democratas nos programas políticos apresentados ao eleitorado. Os termos «modernização» e «reforma» tornaram-se recorrentes, tanto no discurso dos social-democratas como no dos neoliberais.
Stuart Hall identificou os principais objectivos dessa «reforma» considerada «modernizadora»: abrir a via aos investimentos privados e tornar cada vez mais difusa a distinção entre público e privado; cumprir à risca os critérios de eficácia e rentabilidade impostos pelo mercado; instalar a autoridade do gestor empresarial (o manager) aos comandos da administração pública; reformar as práticas do trabalho acentuando a sua individualização; incitar os assalariados a concorrerem uns contra os outros através de instrumentos de motivação financeiros que minam a negociação colectiva; «quebrar a espinha» aos sindicatos diminuindo o seu poder reivindicativo; reduzir drasticamente os efectivos e os custos dos serviços públicos; colocar e/ou manter os salários do sector público abaixo dos salários do sector privado; reorganizar os serviços segundo o princípio do funcionamento «a duas velocidades», através da chamada «selectividade».
Assim se tenta constituir, por exemplo, um serviço nacional de saúde e um ensino «a duas velocidades»: uma para os ricos, livres de escolher entre público e privado, e capazes de desenvolver os seus próprios sistemas privados de saúde e de formação escolar (diminuindo o contributo para a sustentabilidade dos sistemas públicos); outra para os pobres, abandonados à sua sorte, impotentes perante o esvaziamento dos cofres públicos, o fim da protecção social, do salário mínimo, do direito ao trabalho e à sua duração fixada na lei. Isto em detrimento dos princípios basilares da solidariedade, igualdade e universalidade. E abrindo caminho para, por exemplo, tornar a saúde um dos sectores mais lucrativos para o investimento privado, através da construção e gestão de hospitais públicos.
Seguindo o exemplo do «blairismo», a comunicação política tem sido a arma fundamental dos partidos da IS, na tentativa de conciliar o inconciliável e de justificar o injustificável – como, por exemplo, a pesca à linha que têm vindo a fazer nos programas políticos da direita neoliberal, com o objectivo de conquistar votos no «grande centro» ou «centrão». Trata-se de «envernizar», recorrendo à retórica, propostas políticas neoliberais, tornando-as mais atractivas aos olhos dos seus eleitores tradicionais: classes médias e classes populares.
Reduzindo a política à comunicação e à gestão da opinião, para seduzir os diferentes públicos, vários partidos da IS terão conseguido realizar efemeramente a quadratura do círculo, conquistando muitos votos ao centro e à direita, mas terão perdido seguramente a alma e a coerência ideológica e política. Tal mudança não foi só em direcção ao «centro». Foi sobretudo em direcção ao chamado «centro do centro», afastando-se assim esses partidos da sua caracterização, aliás bastante discutível, como partidos de centro-esquerda.
O «centro do centro» corresponde àquilo a que Maurice Duverger chamou o «juste milieu». É evidente que ele tinha razão quando afirmou, há mais de 40 anos, no livro intitulado La Démocratie sans le peuple (publicado em 1967), o seguinte: «O centrismo favorece a direita. Aparentemente, as coligações do “juste milieu” são dominadas, ora pelo centro-direita, ora pelo centro-esquerda, seguindo uma oscilação de fraca amplitude. (…) Estas aparências mascaram uma realidade completamente diferente. Por trás da ilusão de um movimento pendular, o centro-direita domina quase sempre. (…) Em vez de implicar uma transformação lenta mas regular da ordem existente, a conjunção dos centros desemboca no imobilismo, ou seja, no triunfo da direita».
O «centro do centro» é, pois, um território propício a renúncias ideológicas e abdicações políticas, invocados os superiores interesses da Nação, do País ou do Estado, consoante a carapuça que cada partido queira enfiar.
Letargia ideológica e política
ANTONIO Gramsci dizia que «a crise é quando o que é velho está a morrer e o que é novo não consegue nascer». Estamos a assistir à agonia do capitalismo financeiro, que pode ser longa e ter consequências ainda mais devastadoras, mas a social-democracia continua em estado de letargia ideológica e política, quando dela seria legítimo esperar a formulação de propostas diferentes e inovadoras, claramente distintas do neoliberalismo vigente.
Os partidos da IS deviam promover a crítica do individualismo dominante e reabilitar os valores da solidariedade, igualdade e universalidade, ferramentas conceptuais indispensáveis à formulação das políticas públicas. Deviam combater o cepticismo e a desconfiança em relação à social-democracia, cujo papel histórico corre o risco de ser ultrapassado pelo sentimento generalizado entre os cidadãos de que não há alternativa, de que não podem influir no curso dos acontecimentos porque os mecanismos democráticos já não conseguem funcionar sob o peso de uma necessidade histórica e económica esmagadora.
A social-democracia europeia não devia apresentar-se ao eleitorado como mera alternativa formal, tão-só capaz de gerir menos mal ou de gerir melhor que a direita neoliberal. Devia apresentar propostas políticas inovadoras e mobilizadoras, incutindo nos cidadãos confiança na capacidade de regeneração das sociedades democráticas e inculcando neles o sentimento de que continua a ser possível fazer escolhas democráticas claramente diferenciadas.
Jacques Attali, que está longe de ser suspeito de esquerdismo, escreveu há poucas semanas no L’Express que já há quem reconheça que «esta crise foi consequência do enfraquecimento da parte dos salários no valor acrescentado».
Declaração surpreendente, vinda de quem vem. Mas Attali ainda foi mais longe. Contrariando os adeptos da chamada «globalização feliz», ousou afirmar que, «se a diminuição do custo do trabalho fosse o factor-chave para sair vencedor da competição internacional, então o Haiti e o Bangladeche seriam os grandes campeões da globalização». Este reconhecimento tardio, verdadeiro «acto de contrição», vai claramente contra a teoria dominante da austeridade salarial, que continua a ser aplicada sem contemplações. Mas Attali não está só.
Num documento de trabalho (working paper) sobre «Endividamento e desigualdades», datado de Dezembro de 2010, encomendado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e coordenado por dois economistas – Michael Kumhof e Roman Rancière – pode ler-se o seguinte: «Restabelecer a igualdade redistribuindo os rendimentos dos ricos pelos pobres, não agradaria só aos Robin dos Bosques do mundo inteiro; poderia também poupar à economia mundial uma nova crise de grandes proporções».
Em entrevista recente, Rancière reafirma que uma das grandes alavancas da luta contra o crescimento das desigualdades consiste, pura e simplesmente, no aumento dos salários das classes médias e baixas. E acrescenta: «Imposta ou negociada, a recuperação dos rendimentos dos trabalhadores é a mais segura das respostas para evitar a recaída nos diversos problemas que conduziram à crise. Sem o que, como mostra o nosso estudo, há fortes probabilidades de voltarmos a ser confrontados com o mesmo cenário» (Marianne, 25 de Junho de 2011).
Todavia, não são soluções como esta que se divisam no horizonte da crise. Aquilo a que assistimos é a mais cortes nos salários, ao aumento do desemprego (que dá vantagem aos patrões nas negociações salariais) e a uma concorrência cada vez mais feroz dos países emergentes, a par da desindustrialização de vários países da eurozona. O que significa, conforme salienta o economista Patrick Artus, que «os países da OCDE já conhecem ou vão conhecer uma travagem ou mesmo uma diminuição dos salários» no futuro imediato.
Artus afirma, aliás, que a Europa nada ganhará em alinhar numa política de «hipercompetitividade por compressão salarial», como a que pratica a Alemanha. Porque a União Europeia não pode ser um conjunto de Alemanhas, e porque, se os salários baixarem em todos os países europeus, nenhum conseguirá conquistar partes de mercado e todos sofrerão um recuo no consumo. Pior ainda: «reduzir os salários não melhora significativamente a competitividade em relação aos países emergentes, dada a enorme diferença de custos de produção entre estes países e os da OCDE [Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico]». Seria, portanto, um sacrifício inútil.
A social-democracia e a austeridade
O FUTURO da social-democracia depende muito da correcta interpretação destes sinais. Um novo paradigma não pode ser construído a partir de políticas de austeridade brutais, que contribuem para aumentar as desigualdades, a pobreza e o desemprego. Tem de ser construído com base em soluções que contribuam para atenuar os sacrifícios dos cidadãos e evitar a deflagração de novas crises. Nesta perspectiva, há vários instrumentos que são incontornáveis.
Desde logo, a recuperação dos rendimentos dos trabalhadores, associada a outras alavancas essenciais da luta contra as desigualdades, designadamente: um forte aumento da progressividade do imposto sobre os rendimentos, erradicando os nichos fiscais em que os mais ricos costumam refugiar-se; e um controlo eficaz dos movimentos de capitais, através, por exemplo, da aplicação da taxa Tobin sobre as transacções financeiras, que a alta finança considera uma verdadeira bomba, de que nem quer ouvir falar. Sem um controlo efectivo da globalização, designadamente dos movimentos de capitais, será muito difícil, se não impossível, reduzir as desigualdades salariais.
Também é essencial combater a corrupção, a fraude e a evasão fiscais, com instrumentos legais e meios materiais e humanos adequados, que tornem esse combate eficaz. Além disso, é indispensável impor fortes restrições na esfera financeira, cuja hipertrofia se alimenta do negocismo sem freio e do excesso de rendimentos e bonificações de que beneficia uma ultra-elite.
Será muito difícil revolucionar ou reformar a social-democracia num só país. Por isso a Internacional Socialista devia promover a elaboração de uma espécie de programa comum da social-democracia, que seria um documento orientador dos programas dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas, naturalmente distintos entre si e adaptados às realidades nacionais.
Os partidos da IS têm de libertar-se da canga ideológica da «terceira via», da influência nociva do «blairismo» e da ilusão de que existe um «novo centro». Têm de renovar os discursos, refazer os programas e ancorar as novas propostas políticas em valores tão basilares como a soberania popular, a igualdade entre os cidadãos, a universalidade de direitos e a solidariedade social.
O objectivo da social-democracia tem de ser o desenvolvimento humano, a justiça social e o bem-estar da maioria dos cidadãos através da justa redistribuição das riquezas, da garantia de sustentabilidade dos serviços públicos essenciais (Educação, Saúde, Segurança Social), da defesa do Estado democrático e dos direitos, liberdades e garantias fundamentais em que ele assenta.
Parafraseando o título de um artigo de Joseph Stiglitz, o neoliberalismo é «o triunfo da cupidez». Os neoliberais são as famosas raposas de Lacordaire, à solta num galinheiro sem rede. As «reformas» que reclamam visam sobretudo satisfazer a cupidez dos plutocratas e a ganância das oligarquias financeiras.
Alguém lembrou que, tal como Jesus Cristo anunciou o reino de Deus e foi a Igreja que apareceu, também o capitalismo anunciou o reino da Liberdade e foi a oligarquia financeira que apareceu (e a plutocracia que se instalou no poder).
Moral da história: não é descurando a protecção dos galinheiros que se afugentam as raposas. Qualquer alternativa de esquerda ao neoliberalismo passa pela recuperação e renovação ideológica dos partidos da Internacional Socialista, pelo combate às oligarquias financeiras e pela reabilitação da democracia.
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