domingo, 28 de janeiro de 2007

DÉFICE MUSICAL

A GRANDE MÚSICA EM PORTUGAL tem dias. Por isso, não espanta que se acabe com a Festa da Música e a substituam por Dias da Música. Também não espanta que a excelsa ministra da Cultura diga que «era um disparate de gestão gastar-se uma percentagem do orçamento absolutamente exorbitante em três dias». Um disparate – disse ela. O que me fez lembrar aquele boneco do Contra-Informação que era a caricatura de outro ministro da Cultura que passava o tempo a dizer: «Que disparate!». Um velho pesadelo hilariante que me perturbou o sono naqueles dois anos que passei na moribunda Fundação de São Carlos tentando iludir-me a mim próprio até perceber que estava a ser ludibriado.

Sete anos durou a Festa da Música. Tantos quantos o pastor Jacob serviu Raquel, embora a expensas de Labão, que «em lugar de Raquel lhe deu a Lia». Vem a propósito o soneto de Camões porque, também neste caso, em vez da bela Festa vão dar-nos Dias. A Festa era a Raquel de muitos milhares de melómanos que, como Jacob, só a queriam a ela. Estavam dispostos «a servir outros sete anos». E mais serviriam, «se não fora para tão longo amor tão curta a vida!». É verdade, senhora ministra: esta vida são três dias. E bem merece, de vez em quando, «um disparate». Mas Labão é forreta. Sobrepujado pela «Colecção Berardo» e deprimido pela obsessão do défice, procura esconder a economia destrutiva do avarento sob o manto diáfano da parcimónia criadora do campónio.

Esta era uma Festa genuinamente popular, onde imensa gente, sobretudo jovens, ia ouvir grande música e ver grandes músicos pela primeira vez – ou pela única vez ao longo de um ano, já que as outras ofertas, por cá, são poucas, caras e com acesso muito limitado pela lotação das salas. As temporadas de ópera do São Carlos, apesar de serem bem melhores do que no meu tempo, continuam a ser dispendiosas e curtas, os preços dos bilhetes são elevados e a lotação do teatro cabe na cova de um dente. As temporadas de música da Fundação Gulbenkian são um «vício» que sai caro às criaturas remediadas e é quase inacessível para as que não têm cheta. Além disso, é uma instituição privada e não tem obrigação de oferecer bodos aos melómanos pobres. Mas o Estado, tem!

Claro que o mecenato quase não existe em Portugal. Os empresários estão-se nas tintas para a Folle Journée de Nantes transposta para Lisboa. Ouvir As Bodas de Fígaro durante três horas deve ser uma chumbada para eles. Não espanta que a Festa da Música tenha o mesmo destino dos magníficos concertos Em Órbita, quando a PT deixou de os patrocinar. Em 1996, o professor Cavaco perguntava aos alunos: «Devemos subsidiar a ópera, se os indivíduos não vão à ópera e preferem ir ao concerto de Tina Turner?». Eis a resposta. Encerrar o São Carlos daria grande escândalo. Mas a Festa da Música é «um disparate» que só diverte 50 mil «indivíduos». É preciso poupar na Cultura? Corta-se na grande música e acaba-se com a Festa. Viva a Tina Turner! Morra a Castafiore!

«DN» - 1 Dez 06
http://sorumbatico.blogspot.com/2006/12/dfice-musical.html

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