domingo, 28 de janeiro de 2007

O GRILO FALANTE E O CARANGUEJO


PARA ESCALPELIZAR o documento da Irmã Lúcia sobre o terceiro segredo de Fátima, escrito em 1944, Umberto Eco socorre-se de um conceito muito próprio e sui generis, a que ele chama, com ironia, o dom de pósmonição. Uma espécie de premonição póstuma ou, como diria o saudoso futebolista João Pinto, um prognóstico depois do jogo. É nessa perspectiva - como quem diz: assim também eu! - que Eco descasca o segredo de Lúcia, no qual são perfeitamente reconhecíveis citações do Apocalipse de S. João. Mas remata o texto com elegância: «Cada vidente vê aquilo que a sua cultura lhe ensinou».Este é apenas um dos muitos e magníficos textos que Umberto Eco reúne no seu mais recente livro, intitulado A passo di gambero, Guerre calde e populismo mediático. Nele, analisa e comenta o regresso triunfal das «guerras quentes», o início de uma nova época de cruzadas com a ressurreição do velho combate entre a Cristandade e o Islão, os fundamentalismos cristãos, a polémica antidarwiniana, o fantasma do «perigo amarelo», as grandes migrações dos «povos bárbaros», o ressurgir do antisemitismo, a instauração de formas de governo baseadas no apelo populista dos média - entre outros sintomas de regressão. «Como se a História, esfalfada por dois milénios de progressão, se enrolasse sobre si própria» e caminhasse às arrecuas, como o caranguejo ou o lagostim.

Impregnado pelo pensamento de Norberto Bobbio acerca dos homens de cultura, cuja função primordial é semear dúvidas, mais do que andar à colheita de certezas, Eco também sustenta que os intelectuais devem exprimir a sua criatividade, tanto através de ideias inovadoras como através da crítica constante do saber e das práticas antecedentes, sem esquecer a crítica dos seus próprios discursos. «Electrão livre», Eco desempenha o papel de «grilo falante», que não poupa nada nem ninguém à crítica, inclusive o partido que escolheu, mesmo correndo «o risco de ser fuzilado logo à primeira vaga».

Eco evoca ainda a metáfora de Italo Calvino em O Barão Trepador, para sugerir que «o intelectual deve participar, mantendo-se empoleirado nas árvores». Talvez perca «a vantagem de ter os pés bem assentes na terra, mas ganha em largueza de vistas». Não sobe às árvores para escapar a obrigações, mas por sentir que deve manter-se ágil se não quiser acabar como Visconde cortado ao meio ou como Cavaleiro inexistente.

Até para fazer a guerra é preciso cultura, nota Eco. Mas a desconfiança ancestral da direita americana em relação aos intelectuais levou Bush a ignorar os cabeças de ovo que poderiam explicar a mentalidade dos povos que ele decidiu bombardear e converter. Só que, como já avisava O bravo soldado Chveik, de Jaroslav Hasek, «no topo de cada árvore» pode estar «um soldado sem disciplina», coisa que o coronel Makovec acharia intolerável: «A disciplina, seus brutos, é necessária, porque, sem ela, vocês trepariam às árvores como macacos, mas o serviço militar fará de vocês, caterva de idiotas, membros da sociedade humana». Podia ser esta a réplica de Bush a Calvino e Umberto Eco.

NOTA: Os termos écrevisse (francês) e gambero (italiano) tanto podem ser traduzidos por «caranguejo» como por «lagostim». A editora francesa optou por reproduzir um lagostim na capa. Mas, em português, o costume é dizer: «andar para trás como o caranguejo».


«DN» - 20 Out 06
http://sorumbatico.blogspot.com/2006/10/o-grilo-falante-e-o-caranguejo.html

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