domingo, 28 de janeiro de 2007

ARROGÂNCIA IMPERIAL

Tucídides

QUANDO INVOCAMOS A HISTÓRIA para compreender melhor o presente, convém ter cautela com as analogias superficiais e é prudente evitar identificações que acabam por se revelar como falsas. Existem, todavia, exemplos com os quais é legítimo estabelecer paralelismos. A Guerra do Peloponeso, escrita por Tucídides há 24 séculos, é um marco da história política e militar que, pelo seu carácter demonstrativo e pelo rigor com que os factos são descritos, nunca deixou de ser convocada e estudada ao longo dos tempos, revelando, frequentemente, uma flagrante e surpreendente actualidade.

Ao lermos a narrativa de Tucídides, o que mais impressiona, nesta guerra que se prolonga por 27 anos, entre 431 a.C. e 404 a.C., causando a morte de milhares de civis e o fim da hegemonia de Atenas sobre o Mar Egeu e boa parte da Grécia, é o complexo de superioridade e a arrogância imperial da Cidade-Estado democrática. Não só em relação aos seus inimigos - Esparta e as outras Cidades-Estados oligárguicas, aliadas na Liga do Peloponeso -, mas também em relação a Cidades-Estados que pretendem ser neutrais e, sobretudo, em relação às Cidades-Estados aliadas de Atenas na Confederação de Delos, vergadas pelo peso dos tributos e politicamente tratadas como súbditas.

Na célebre oração fúnebre que Tucídides atribui a Péricles, em homenagem aos atenienses mortos no primeiro ano da Guerra do Peloponeso, o que avulta não é apenas o extraordinário elogio da democracia e da liberdade. É, acima de tudo, a justificação da guerra invocando a superioridade moral de Atenas, que legitima o direito de impor a sua hegemonia a todos os outros. É a «retórica da prevaricação», como lhe chama Umberto Eco: nós temos o direito de impor a nossa força aos outros porque encarnamos a melhor forma de governo que existe. O paralelo com a actualidade é irresistível.

Como salienta Jacqueline de Romilly, no livro sobre Alcibiade ou les dangers de l’ambition, Péricles afirmava não ser possível renunciar ao império e abandoná-lo, mas não pensava em conquistas. Mais ambicioso será o seu pupilo Alcibíades, 15 anos após a morte de Péricles (429 a.C.), ao afirmar que a própria existência do império o obriga a multiplicar as suas intervenções, não podendo, por isso, Atenas renunciar às conquistas. Alcibíades defende a ocupação da Sicília, não só por causa das suas riquezas (é a maior fornecedora de trigo para toda a Grécia) mas também pela necessidade de expansão do imperialismo ateniense. A expedição à Sicília será um completo desastre.

Entre o trigo siciliano e o petróleo iraquiano distam 24 séculos. Os conselheiros neoconservadores de Bush leram Tucídides e quiseram corrigir a História, convencidos de que ela não se repete. Desprezaram os alertas do estratego Nícias, sobre os riscos da expedição à Sicília. Mas o chefe do estado-maior do Exército britânico decidiu assumir agora o papel de Nícias, defendendo a retirada do Iraque, «sometime soon»!

«DN» - 27 Out 06
http://sorumbatico.blogspot.com/2006/10/arrogncia-imperial.html

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