1 - Em períodos de crise tão profunda e tão grave como esta
que estamos a viver, não devemos ignorar as lições da História, por mais
excessivas que possam parecer as comparações (que vou fazer) entre figuras e
factos actuais e pretéritos. Porque a História pode sempre repetir-se, quer
como farsa quer como tragédia.
Por exemplo, ao ouvir a
chanceler Angela Merkel reclamar mais cinco anos de austeridade à Europa em
crise, insinuou-se no meu espírito a comparação entre o seu fanático ministro
das Finanças, Wolfgang Schäuble, e o general fascista Millán Astray, galego, mutilado
de guerra e legionário ao serviço de Franco, que proferiu, em 12 de Outubro de
1936, durante a comemoração do Dia da Raça na Universidade de Salamanca, o
grito irracional e obsceno: «Muera la inteligência! Viva la muerte!».
A actual política de
sujeição dos países da Europa meridional ao diktat financeiro e orçamental alemão também significa desprezo pela
inteligência dos súbditos e uma condenação à morte das respectivas economias.
Outro exemplo que me
ocorre é o do primeiro-ministro português, Passos Coelho, cujo ridículo
patriotismo de lapela não consegue esconder a germanofilia financeira e
orçamental que faz dele uma espécie de «Gauleiter», designação alemã para um
chefe provincial que desempenha funções equiparáveis às de um Prefeito ou
Governador civil. E escusado seria dizer, mas digo, que o ministro das Finanças
português, Vítor Gaspar, outro adepto fanático do neoliberalismo – ou do
ordoliberalismo, se quisermos acentuar a sua sujeição à doutrina germânica –
está para Passos Coelho como Wolfgang Schäuble para Angela Merkel,
Todos eles são
políticos e/ou tecnocratas duros e perversos, com corações de pedra e mentes
embotadas, indiferentes ao sofrimento de milhões de europeus cada vez mais
empobrecidos pela austeridade brutal que tão detestáveis criaturas preconizam e
impõem, mas não praticam.
2 – A expressão «corações de pedra», fui buscá-la ao livro de
John Maynard Keynes sobre «As
consequências económicas da paz», publicado em 1920, e que é uma
devastadora crítica da Conferência de Versalhes e do Tratado que ela produziu,
impondo à Alemanha derrotada na Grande Guerra «cláusulas de reparação»
terrivelmente punitivas e humilhantes, que era manifestamente impossível cumprir.
Keynes participara na
conferência como representante do Tesouro (Ministério das Finanças) britânico,
apresentando um plano alternativo bem mais inteligente e razoável do que aquele
que acabou por vingar. Por isso demitiu-se e denunciou, no seu livro, o misto
de ingenuidade política, boas intenções (Woodrow Wilson, EUA) e espírito de
vingança (Clemenceau, França) que se sobrepuseram aos reais interesses «da
Humanidade e da civilização europeia».
Como Keynes descreveu
metaforicamente numa bela prosa: «De todas as formas, o velho mundo era duro na
sua perversidade: o seu coração de pedra teria conseguido embotar a espada
afiada do mais bravo cavaleiro errante. Mas o cego e surdo Dom Quixote estava a
entrar numa caverna onde a sua rápida e brilhante espada já estava nas mãos dos
seus adversários».
Como é sabido, o
Tratado de Versalhes provocou enorme ressentimento entre os alemães e produziu terríveis
consequências: inflação galopante; pobreza e caos social; ascensão de Hitler ao
poder, em 1933; participação da aviação nazi, ao lado dos fascistas (o
bombardeamento de Guernica é um terrível símbolo), na Guerra Civil de Espanha
(1936-1939); e a eclosão da II Guerra Mundial, que iria devastar a Europa e
parte da Ásia e da Oceânia, entre 1939 e 1945.
Há alguns meses, o
presidente da Confederação Europeia de Sindicatos enviou uma carta à Comissão
Europeia, comparando os juros dos empréstimos da troika, mais os brutais planos de austeridade e privatizações, às
«cláusulas de reparação do Tratado de Versalhes», reduzindo os países membros
da zona euro sob resgate a «um estatuto quase colonial». Ninguém o ouviu: nem
Durão Barroso, nem Merkel, nem Schäuble, nem Gaspar, nem Passos Coelho.
Preferiram apostar, perfidamente, na sujeição dos países em crise ao dogma
ultra-liberal.
3 – Querem impor aos portugueses, tal como aos gregos,
espanhóis, irlandeses, cipriotas, e outros mais, um regime político não
previsto nas respectivas Constituições. Esse regime tem um nome: neoliberalismo
de Estado de fachada democrática. È que, ao invés do que proclama a sua
ideologia, o neoliberalismo está muito longe de implicar o desaparecimento do
Estado (no sentido anarquista ou libertário).
Bem pelo contrário,
para os fanáticos neoliberais que estão no poder, o Estado tem de desempenhar
um papel porventura novo, mas não menos fulcral, que consiste em impor um
contexto favorável aos negócios – isto é, às grandes empresas e ao sistema
financeiro – tanto interna como externamente, inclusive derrubando pela força
regimes e estruturas sócio-económicas tradicionais.
O seu ideário está
resumido na fórmula «D-L-P», que significa: i) Desregulação (da economia); ii)
Liberalização (do comércio e indústria); iii) Privatização (das empresas do
Estado). Há quem já não se lembre dos primeiros «laboratórios» do
neoliberalismo: o Chile de Pinochet e dos Chicago
Boys; o Brasil da ditadura militar e de Delfim Neto; a Argentina da junta
militar e de Domingo Caballo. Longe vá o agoiro!
Keynes prognosticou,
com enorme lucidez, as desastrosas consequências de uma austeridade cega e
brutal, que provoca a pobreza e o caos social e ameaça destruir o que também
ele designava por civilização europeia.
A política posta em prática por corações de pedra é, acima de tudo, estúpida e
criminosa. É preciso travá-la já!
Infelizmente falta-nos,
aqui e na Europa, uma figura com a coragem e a estatura moral e intelectual de
Miguel de Unamuno – o reitor da Universidade de Salamanca que condenou in loco o «necrófilo e insensato grito»
de Millán Astray – para enfrentarmos os fanáticos do neoliberalismo e do
«darwinismo» social que teimam em promover a «selva», destruir o Estado social
e fazer regredir a Europa quase 70 anos.
«DN» de 19 de Novembro
de 2012