terça-feira, 20 de novembro de 2012

Corações de pedra


1 - Em períodos de crise tão profunda e tão grave como esta que estamos a viver, não devemos ignorar as lições da História, por mais excessivas que possam parecer as comparações (que vou fazer) entre figuras e factos actuais e pretéritos. Porque a História pode sempre repetir-se, quer como farsa quer como tragédia.  
Por exemplo, ao ouvir a chanceler Angela Merkel reclamar mais cinco anos de austeridade à Europa em crise, insinuou-se no meu espírito a comparação entre o seu fanático ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, e o general fascista Millán Astray, galego, mutilado de guerra e legionário ao serviço de Franco, que proferiu, em 12 de Outubro de 1936, durante a comemoração do Dia da Raça na Universidade de Salamanca, o grito irracional e obsceno: «Muera la inteligência! Viva la muerte!».
A actual política de sujeição dos países da Europa meridional ao diktat financeiro e orçamental alemão também significa desprezo pela inteligência dos súbditos e uma condenação à morte das respectivas economias.
Outro exemplo que me ocorre é o do primeiro-ministro português, Passos Coelho, cujo ridículo patriotismo de lapela não consegue esconder a germanofilia financeira e orçamental que faz dele uma espécie de «Gauleiter», designação alemã para um chefe provincial que desempenha funções equiparáveis às de um Prefeito ou Governador civil. E escusado seria dizer, mas digo, que o ministro das Finanças português, Vítor Gaspar, outro adepto fanático do neoliberalismo – ou do ordoliberalismo, se quisermos acentuar a sua sujeição à doutrina germânica – está para Passos Coelho como Wolfgang Schäuble para Angela Merkel,
Todos eles são políticos e/ou tecnocratas duros e perversos, com corações de pedra e mentes embotadas, indiferentes ao sofrimento de milhões de europeus cada vez mais empobrecidos pela austeridade brutal que tão detestáveis criaturas preconizam e impõem, mas não praticam.

2 – A expressão «corações de pedra», fui buscá-la ao livro de John Maynard Keynes sobre «As consequências económicas da paz», publicado em 1920, e que é uma devastadora crítica da Conferência de Versalhes e do Tratado que ela produziu, impondo à Alemanha derrotada na Grande Guerra «cláusulas de reparação» terrivelmente punitivas e humilhantes, que era manifestamente impossível cumprir.
Keynes participara na conferência como representante do Tesouro (Ministério das Finanças) britânico, apresentando um plano alternativo bem mais inteligente e razoável do que aquele que acabou por vingar. Por isso demitiu-se e denunciou, no seu livro, o misto de ingenuidade política, boas intenções (Woodrow Wilson, EUA) e espírito de vingança (Clemenceau, França) que se sobrepuseram aos reais interesses «da Humanidade e da civilização europeia».
Como Keynes descreveu metaforicamente numa bela prosa: «De todas as formas, o velho mundo era duro na sua perversidade: o seu coração de pedra teria conseguido embotar a espada afiada do mais bravo cavaleiro errante. Mas o cego e surdo Dom Quixote estava a entrar numa caverna onde a sua rápida e brilhante espada já estava nas mãos dos seus adversários».
Como é sabido, o Tratado de Versalhes provocou enorme ressentimento entre os alemães e produziu terríveis consequências: inflação galopante; pobreza e caos social; ascensão de Hitler ao poder, em 1933; participação da aviação nazi, ao lado dos fascistas (o bombardeamento de Guernica é um terrível símbolo), na Guerra Civil de Espanha (1936-1939); e a eclosão da II Guerra Mundial, que iria devastar a Europa e parte da Ásia e da Oceânia, entre 1939 e 1945.
Há alguns meses, o presidente da Confederação Europeia de Sindicatos enviou uma carta à Comissão Europeia, comparando os juros dos empréstimos da troika, mais os brutais planos de austeridade e privatizações, às «cláusulas de reparação do Tratado de Versalhes», reduzindo os países membros da zona euro sob resgate a «um estatuto quase colonial». Ninguém o ouviu: nem Durão Barroso, nem Merkel, nem Schäuble, nem Gaspar, nem Passos Coelho. Preferiram apostar, perfidamente, na sujeição dos países em crise ao dogma ultra-liberal.

3 – Querem impor aos portugueses, tal como aos gregos, espanhóis, irlandeses, cipriotas, e outros mais, um regime político não previsto nas respectivas Constituições. Esse regime tem um nome: neoliberalismo de Estado de fachada democrática. È que, ao invés do que proclama a sua ideologia, o neoliberalismo está muito longe de implicar o desaparecimento do Estado (no sentido anarquista ou libertário).
Bem pelo contrário, para os fanáticos neoliberais que estão no poder, o Estado tem de desempenhar um papel porventura novo, mas não menos fulcral, que consiste em impor um contexto favorável aos negócios – isto é, às grandes empresas e ao sistema financeiro – tanto interna como externamente, inclusive derrubando pela força regimes e estruturas sócio-económicas tradicionais.
O seu ideário está resumido na fórmula «D-L-P», que significa: i) Desregulação (da economia); ii) Liberalização (do comércio e indústria); iii) Privatização (das empresas do Estado). Há quem já não se lembre dos primeiros «laboratórios» do neoliberalismo: o Chile de Pinochet e dos Chicago Boys; o Brasil da ditadura militar e de Delfim Neto; a Argentina da junta militar e de Domingo Caballo. Longe vá o agoiro!
Keynes prognosticou, com enorme lucidez, as desastrosas consequências de uma austeridade cega e brutal, que provoca a pobreza e o caos social e ameaça destruir o que também ele designava por civilização europeia. A política posta em prática por corações de pedra é, acima de tudo, estúpida e criminosa. É preciso travá-la já!
Infelizmente falta-nos, aqui e na Europa, uma figura com a coragem e a estatura moral e intelectual de Miguel de Unamuno – o reitor da Universidade de Salamanca que condenou in loco o «necrófilo e insensato grito» de Millán Astray – para enfrentarmos os fanáticos do neoliberalismo e do «darwinismo» social que teimam em promover a «selva», destruir o Estado social e fazer regredir a Europa quase 70 anos.

«DN» de 19 de Novembro de 2012                       

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