sexta-feira, 30 de março de 2007

O SÉCULO DE CONRAD

MUITO ANTES DE FRANCIS FORD COPPOLA se ter inspirado na extraordinária novela O Coração das Trevas, para realizar o filme Apocalypse Now (1979), já a filósofa Hannah Arendt considerara essa obra mais emblemática de Joseph Conrad como «a que melhor nos pode esclarecer sobre a verdadeira experiência do racismo em África», construindo a partir dela o capítulo III - Raça e burocracia - da segunda parte - O Imperialismo - do seu monumental estudo sobre As Origens do Totalitarismo, publicado em 1951.

Podemos recuar ainda mais no «terrível século XX», em cujas trevas mergulhou a prosa desoladamente lúcida de Conrad, para irmos ao encontro de outros que também perceberam até que ponto a vastíssima obra literária desse eslavo anglófilo, nascido no século XIX, intuía e prenunciava tantos horrores que devastaram a Europa colonialista, imperialista, culta e decadente, sobretudo na primeira metade do século passado. Desde logo André Gide, que aprendeu inglês expressamente para poder ler Conrad no original. Mas também Thomas Mann, que lhe dedicou um belo ensaio, em 1925, no qual analisa o «brilhante e fascinante romance policial e político» que é O Agente Secreto.

Józef Teodor Nalecz Konrad Korzeniowski, polaco de pai e mãe, como o nome de baptismo indica, nasceu em 1857, há século e meio. O romance O Agente Secreto foi publicado em 1907, há um século. Duas efemérides que constituem um óptimo pretexto para convocar de novo a obra de Joseph Conrad (1857-1924) e incitar novas gerações a lê-la. Se possível no original, como André Gide. Apesar de o inglês ser a terceira língua de Conrad, a seguir ao polaco e ao francês, era aquela que mais admirava e foi a que ele adoptou (tardiamente, aos 21 anos) para escrever sobre o «espectáculo enigmático» e «a empresa perigosa que é a nossa existência», captando o «fragmento salvo da voracidade do tempo», tornando ficção mais do que «um episódio inquietante nas vidas obscuras de alguns indivíduos, arrancados à multidão ignorada dos perplexos, dos simples, dos que não têm voz» - como ele nos explica no famoso prefácio a O Negro do Narciso.

A ganância, a vontade de dominação, os abismos de crueldade a que uma e outra podem conduzir os homens, por mais civilizados que se considerem, estão patentes em obras tão poderosas como O Coração das Trevas (1902), Nostromo (1904) ou O Agente Secreto (1907), na qual Conrad prova ser um escritor tão extraordinário em terra firme como nos rios e mares que banham quase toda a sua obra. E há, também, essa admirável história de redenção pessoal de um jovem marinheiro, que é Lord Jim (1900). E todas as outras obras escritas por esse aristocrata polaco que quis ser contrabandista e marinheiro antes de se tornar inglês e escritor - transformando-se em Jóia da Coroa Britânica, como hoje o evoca Juan Gabriel Vásquez na sua esplêndida História Secreta de Costaguana, o nome da república sul-americana inventada por Conrad há mais de um século!
«DN-6ª» - 30 Mar 07

sexta-feira, 23 de março de 2007

TIRANOS CULTOS


AINDA HOJE NOS SURPREENDEMOS com a revelação de que um tirano ou um déspota particularmente cruel e sanguinário era, afinal, um homem culto, leitor e admirador das melhores obras literárias, clássicas ou contemporâneas, apreciador de grande música ou dos melhores filmes, sem que tal o tenha demovido ou impedido de ordenar a execução dos crimes mais brutais – da tortura ao homicídio, do massacre ao genocídio.

O certo é que, como ainda recentemente notava o historiador e filósofo Tzvetan Todorov, o profundo conhecimento dos clássicos chineses não impediu Mao Zedong de se tornar num dos maiores criminosos do século XX. Como se o exercício despótico do poder político e a frequentação dos clássicos fossem actividades totalmente dissociadas, permanecendo isoladas em compartimentos estanques na cabeça de um tirano.

Ao longo da história, não são assim tão raros os exemplos, porventura anómalos, de coexistência de cultura e crueldade no espírito de um déspota. Átila (395-453), único imperador dos Hunos, é um caso assaz curioso e enigmático. Sempre designado como o flagelo de Deus e apresentado como símbolo da ferocidade dos bárbaros e sinónimo de massacre e devastação, a verdade é que era um homem cultivado, falava fluentemente o grego e o latim, era um diplomata excepcional e um grande estratego – uma espécie de Napoleão que logrou, em 15 anos, construir um império do Danúbio aos Urais.

Numa excelente biografia de Átila (Gallimard, 2006), Eric Deschodt considera-o um «imperador anarquista», um homem encantador e tolerante, mais diplomata do que guerreiro, embora temível e implacável em combate. A sua ferocidade, que reflectia os costumes da época, não ultrapassava, no entanto, a dos generais romanos ou persas. Eric Deschodt salienta, aliás, que «a ferocidade da maioria dos imperadores romanos do seu tempo ultrapassava, de longe, a de Átila, sem igualar a sua bravura e o seu génio». Átila queria ser amado e temido, preferindo a sedução ao terror. Podia ter conquistado Roma e Constantinopla, mas desdenhou fazê-lo. Matou milhares de inimigos em combate, mas nunca perseguiu ninguém. E admitiu que era ele «o pior inimigo» de si próprio.

Seria improvável lobrigarmos estas características pessoais em Estaline, um dos mais cruéis tiranos da História. Todavia, conforme nos revela Simon Sebag Montefiore no livro Estaline - A Corte do Czar Vermelho (Aletheia, 2006), esse déspota paranóico e hipocondríaco era um bon vivant, lia Goethe, Maupassant e Zola, admirava Dostoievski, adorava ópera, ouvia vezes sem conta o mesmo concerto de Mozart, era cinéfilo e fã de Spencer Tracy e Clark Gable. É irresistível compará-lo ao carrasco psicopata e nazi do sórdido romance de Jonathan Littell, Les Bienveillantes (Gallimard, 2006), capaz de ler Stendahl e Flaubert numa pausa entre dois massacres bem ordenados. Desgraçadamente, nem sempre se pode afirmar, como Dostoievski, que «a beleza salvará o mundo».

«DN-6ª» - 23 Mar 07

sexta-feira, 16 de março de 2007

POLÍTICOS PARADOXAIS


SERÁ POSSÍVEL UM POLÍTICO APRESENTAR-SE, por um lado, como um homem íntegro, fiel aos ideais e aos amigos, devoto do serviço público, homem de cultura, humanista e amante da justiça, preocupado com a sorte dos mais pobres e desfavorecidos, adepto da ajuda ao Terceiro Mundo, ecologista e defensor do meio-ambiente – e comportar-se, por outro lado, como um chefe de facção astuto e sectário, capaz de desferir golpes baixos e de montar operações clandestinas para tramar adversários ou afastar do caminho rivais do seu próprio bando, usando e abusando dos privilégios e usufruindo de todos os luxos, sem olhar a despesas sumptuárias efectuadas com o dinheiro dos contribuintes?

Se admitirmos que a política não é o terreno privilegiado das virtudes teologais, nem é redutível a uma visão maniqueísta em que só contam o Bem e o Mal, traduzindo-se, pelo contrário, numa actividade bastante complexa, em que nem tudo o que parece é, as aparências iludem e os melhores resultados tantas vezes só se atingem por caminhos tortuosos, métodos pouco ortodoxos e procedimentos inconfessáveis – então, a resposta àquela questão só pode ser afirmativa. Sim, em democracia, os políticos com dimensão e fôlego muito superiores aos de um cidadão comum, não são modelos de virtudes que aspirem à santidade, nem Savonarolas que pregam a moral e acabam numa pira!

A carreira de um político de longo curso – ou de um político fora do comum, se se preferir – está cheia de «belezas ácidas». Esta feliz expressão, usou-a Serge July há quase 20 anos, num brilhante ensaio intitulado Le Salon des Artistes, simultaneamente elogioso e crítico, generoso e cruel, sobre cinco «feras» que, nos anos finais da década de 1980, ainda dominavam a «arena» política em França: François Mitterrand, Jacques Chirac, Giscard d’Estaing, Raymond Barre e Michel Rocard. De entre eles, não hesito em destacar Mitterrand e Chirac como políticos de longo curso e fora do comum.

Em ambos assentam como luvas as palavras de Serge July: «Os grandes artistas da política distinguem-se do magote de ambiciosos pela sua fé nas virtudes curativas da derrota». Embora subestimando, por vezes, os seus adversários, o certo é que Mitterrand e Chirac sofreram e superaram várias derrotas. E, assim como Mitterrand e os seus fiéis foram «beber» no exemplo de De Gaulle para melhor o combater, também Chirac e os seus adeptos se inspiraram no «modelo mitterrandiano» para conquistar o Eliseu.

Como Mitterrand há uma dúzia de anos, é agora Chirac quem suscita livros com balanços da sua longa carreira política de 45 anos. Cito dois. Em L’Inconnu de l’Élysée, Pierre Péan, jornalista de esquerda, enaltece as suas qualidades humanas e políticas. Em Chirac, Mon Ami de Trente Ans, Jean-François Probst, político de direita e colaborador próximo de Chirac, rebaixa-o, apontando-lhe inconfessáveis defeitos e abusos de poder. É assim, contraditório e paradoxal, o retrato fidedigno de alguns políticos maiores.

«DN-6ª» de 16 Mar 07

sexta-feira, 9 de março de 2007

A «MERDA DO DIABO»

BASTA OBSERVAR O MAPA DE ÁFRICA, fixando o olhar no Golfo da Guiné e nos seus oito Estados ribeirinhos produtores de petróleo - com a Nigéria à cabeça, mas também Angola e São Tomé e Príncipe na lista - para se perceber porque é que, em Washington, esta zona geoestratégica crucial é designada como o «próximo Golfo» - «next Gulf». O volume de reservas de petróleo já recenseadas - a maior parte offshore - é de tal ordem, que o seu inevitável destino é tornar-se a grande alternativa ao Golfo Pérsico. A cobiça dos países do Ocidente, com os EUA à cabeça, só tem paralelo na avidez das chamadas potências emergentes como a China, a Índia e o Brasil, que também já lá estão.

A «maldição do ouro negro» - «merda do diabo», como chamam ao petróleo em África - está bem patente nesse insustentável paradoxo que é a Nigéria. Apesar de ser o primeiro produtor de petróleo africano e o quinto maior produtor mundial, 70 por cento dos seus habitantes vivem com pouco mais de um euro por dia, em bairros de lata onde se amontoam aos milhões, ameaçados pelas emanações tóxicas que provocam doenças respiratórias, pelas constantes fugas de petróleo que devastam zonas agrícolas e zonas piscatórias poluindo a cadeia alimentar, pelo banditismo e a corrupção, pela cupidez dos interesses privados que tomaram conta das instituições públicas. Assim, não espanta que a Nigéria vegete no 159º lugar do ranking de desenvolvimento humano da ONU (entre 177 países) e que a esperança de vida dos nigerianos não ultrapasse os 44 anos.


Hoje, não faltam os estudos que confirmam o forte aumento de guerras civis em países produtores de petróleo, gás natural e diamantes, desde o início da década de 1970 até ao final do século XX. Também o recente filme de Edward Zwick sobre a tragédia da Serra Leoa - Diamante de Sangue - serviu para ilustrar esse «círculo vicioso» que faz mergulhar na pobreza e na desgraça tantos países da África e da Ásia. Alice Sindzingre descreve-o com toda a crueza no Le Monde: «detenção de um recurso natural cobiçado nos países ricos; competição entre “senhores da guerra” para controlar a sua predação e para comprar armas; populações submetidas pelo terror; guerra civil perpétua».


O que hoje os estudos revelam e o cinema põe em evidência, foi objecto, há mais de 20 anos, de um surpreendente romance intitulado Uma Ambição no Deserto, fruto da imaginação, ironia, premonição e talento do escritor egípcio Albert Cossery. O primeiro-ministro de um emirado pobre, pacífico e feliz - por não ter «merda do diabo»! - deseja desempenhar um papel de relevo na cena internacional, atraindo as atenções da «grande potência imperialista». Promove, então, uma frente de libertação fantasma, uma série de atentados à bomba e uma falsa sedição para alarmar os «chacais». A metáfora é perfeita. Os livros de Cossery, todos editados pela Antígona, merecem ser lidos de fio a pavio. A imaginação é fértil, os personagens delirantes, a ironia mordaz e a escrita soberba.

«DN-6ª» - 9 Mar 07
http://sorumbatico.blogspot.com/

sexta-feira, 2 de março de 2007

CARICATURAS CONTRA O MEDO


PODE-SE CARICATURAR TUDO E TODOS na praça pública? Ou o incitamento público ao riso e à gargalhada têm limites? Num Estado de direito democrático, pluralista e laico, os únicos limites objectivos ao exercício da liberdade de expressão são os fixados por lei geral e abstracta (por exemplo: o abuso da liberdade de Imprensa; o direito ao bom nome e reputação), não sendo admissível, todavia, a existência de qualquer mecanismo institucionalizado de censura prévia. Quaisquer outros limites só podem ser de natureza individual e subjectiva, voluntariamente assumidos e aceites por cada cidadão, em nome das suas convicções pessoais (nomeadamente, as religiosas) ou do que considera serem, por exemplo, regras de boa educação e critérios de bom senso e bom gosto.

Plantu, um dos mais notáveis caricaturistas franceses da actualidade (Le Monde, L’Express), invocava há poucos meses a máxima de Pierre Desproges - «on peut rire de tout, mais pas avec n’importe qui» («pode-se rir de tudo, mas não com qualquer um») - reivindicando para si próprio o direito à autocensura. A título de exemplo, invocava o facto de «não entrar na vida privada dos homens políticos». E explicava que «talvez não seja preciso desenhar Maomé para criticar o fundamentalismo». Cá em baixo, na Terra, há alvos mais do que suficientes para caricaturar – barbudos, intolerantes e fanáticos, guias religiosos e chefes políticos (Ahmadinejad e Bush incluídos). Por isso mesmo, diz Plantu, convém «reflectir sobre as nossas responsabilidades antes de embarcarmos em ataques acima das nuvens». Mais: «Podemos ser cáusticos e agressivos, mas sem ódio, sem desprezo, com subtileza, para não cairmos na armadilha dos integristas».

A posição adoptada por Plantu é compreensível e séria, tendo em conta o tipo de publicações em que colabora. Mas decorre de uma opção pessoal do caricaturista e não pode ser erigida em regra. Um jornal satírico dificilmente sobreviveria, se adoptasse tal critério. Por isso, é inteiramente legítima a atitude assumida pelo jornal Charlie Hebdo durante o julgamento de que foi alvo, em Paris, acusado por organizações islâmicas de publicar caricaturas que constituem uma «injúria pública contra um grupo de pessoas devido à sua religião» (a sentença só será conhecida a 15 de Março). Como sublinhou o seu director, Philipe Val: «Em terra laica, a religião não é um poder político. E, quando pretenda sê-lo, é preciso que ela aceite ser repelida para o domínio privado que é o seu». Sempre que qualquer religião revele o desejo de impor as suas regras a uma sociedade democrática - que é, por natureza, laica - tem de ser tratada exactamente de acordo com aquilo que é: «uma ideologia como qualquer outra, sujeita a todas as críticas».

Tão importante como não cairmos na armadilha dos integristas, com diz Plantu, é não cairmos na armadilha da nossa própria tolerância. O processo do Charlie Hebdo é um claro aviso. É essencial não dobrar a espinha. É preciso não ceder ao medo!

«DN-6ª» - 2 Mar 07