TIRANOS CULTOS
AINDA HOJE NOS SURPREENDEMOS com a revelação de que um tirano ou um déspota particularmente cruel e sanguinário era, afinal, um homem culto, leitor e admirador das melhores obras literárias, clássicas ou contemporâneas, apreciador de grande música ou dos melhores filmes, sem que tal o tenha demovido ou impedido de ordenar a execução dos crimes mais brutais – da tortura ao homicídio, do massacre ao genocídio.
O certo é que, como ainda recentemente notava o historiador e filósofo Tzvetan Todorov, o profundo conhecimento dos clássicos chineses não impediu Mao Zedong de se tornar num dos maiores criminosos do século XX. Como se o exercício despótico do poder político e a frequentação dos clássicos fossem actividades totalmente dissociadas, permanecendo isoladas em compartimentos estanques na cabeça de um tirano.
Ao longo da história, não são assim tão raros os exemplos, porventura anómalos, de coexistência de cultura e crueldade no espírito de um déspota. Átila (395-453), único imperador dos Hunos, é um caso assaz curioso e enigmático. Sempre designado como o flagelo de Deus e apresentado como símbolo da ferocidade dos bárbaros e sinónimo de massacre e devastação, a verdade é que era um homem cultivado, falava fluentemente o grego e o latim, era um diplomata excepcional e um grande estratego – uma espécie de Napoleão que logrou, em 15 anos, construir um império do Danúbio aos Urais.
Numa excelente biografia de Átila (Gallimard, 2006), Eric Deschodt considera-o um «imperador anarquista», um homem encantador e tolerante, mais diplomata do que guerreiro, embora temível e implacável em combate. A sua ferocidade, que reflectia os costumes da época, não ultrapassava, no entanto, a dos generais romanos ou persas. Eric Deschodt salienta, aliás, que «a ferocidade da maioria dos imperadores romanos do seu tempo ultrapassava, de longe, a de Átila, sem igualar a sua bravura e o seu génio». Átila queria ser amado e temido, preferindo a sedução ao terror. Podia ter conquistado Roma e Constantinopla, mas desdenhou fazê-lo. Matou milhares de inimigos em combate, mas nunca perseguiu ninguém. E admitiu que era ele «o pior inimigo» de si próprio.
Seria improvável lobrigarmos estas características pessoais em Estaline, um dos mais cruéis tiranos da História. Todavia, conforme nos revela Simon Sebag Montefiore no livro Estaline - A Corte do Czar Vermelho (Aletheia, 2006), esse déspota paranóico e hipocondríaco era um bon vivant, lia Goethe, Maupassant e Zola, admirava Dostoievski, adorava ópera, ouvia vezes sem conta o mesmo concerto de Mozart, era cinéfilo e fã de Spencer Tracy e Clark Gable. É irresistível compará-lo ao carrasco psicopata e nazi do sórdido romance de Jonathan Littell, Les Bienveillantes (Gallimard, 2006), capaz de ler Stendahl e Flaubert numa pausa entre dois massacres bem ordenados. Desgraçadamente, nem sempre se pode afirmar, como Dostoievski, que «a beleza salvará o mundo».
O certo é que, como ainda recentemente notava o historiador e filósofo Tzvetan Todorov, o profundo conhecimento dos clássicos chineses não impediu Mao Zedong de se tornar num dos maiores criminosos do século XX. Como se o exercício despótico do poder político e a frequentação dos clássicos fossem actividades totalmente dissociadas, permanecendo isoladas em compartimentos estanques na cabeça de um tirano.
Ao longo da história, não são assim tão raros os exemplos, porventura anómalos, de coexistência de cultura e crueldade no espírito de um déspota. Átila (395-453), único imperador dos Hunos, é um caso assaz curioso e enigmático. Sempre designado como o flagelo de Deus e apresentado como símbolo da ferocidade dos bárbaros e sinónimo de massacre e devastação, a verdade é que era um homem cultivado, falava fluentemente o grego e o latim, era um diplomata excepcional e um grande estratego – uma espécie de Napoleão que logrou, em 15 anos, construir um império do Danúbio aos Urais.
Numa excelente biografia de Átila (Gallimard, 2006), Eric Deschodt considera-o um «imperador anarquista», um homem encantador e tolerante, mais diplomata do que guerreiro, embora temível e implacável em combate. A sua ferocidade, que reflectia os costumes da época, não ultrapassava, no entanto, a dos generais romanos ou persas. Eric Deschodt salienta, aliás, que «a ferocidade da maioria dos imperadores romanos do seu tempo ultrapassava, de longe, a de Átila, sem igualar a sua bravura e o seu génio». Átila queria ser amado e temido, preferindo a sedução ao terror. Podia ter conquistado Roma e Constantinopla, mas desdenhou fazê-lo. Matou milhares de inimigos em combate, mas nunca perseguiu ninguém. E admitiu que era ele «o pior inimigo» de si próprio.
Seria improvável lobrigarmos estas características pessoais em Estaline, um dos mais cruéis tiranos da História. Todavia, conforme nos revela Simon Sebag Montefiore no livro Estaline - A Corte do Czar Vermelho (Aletheia, 2006), esse déspota paranóico e hipocondríaco era um bon vivant, lia Goethe, Maupassant e Zola, admirava Dostoievski, adorava ópera, ouvia vezes sem conta o mesmo concerto de Mozart, era cinéfilo e fã de Spencer Tracy e Clark Gable. É irresistível compará-lo ao carrasco psicopata e nazi do sórdido romance de Jonathan Littell, Les Bienveillantes (Gallimard, 2006), capaz de ler Stendahl e Flaubert numa pausa entre dois massacres bem ordenados. Desgraçadamente, nem sempre se pode afirmar, como Dostoievski, que «a beleza salvará o mundo».
«DN-6ª» - 23 Mar 07
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