sexta-feira, 2 de março de 2007

CARICATURAS CONTRA O MEDO


PODE-SE CARICATURAR TUDO E TODOS na praça pública? Ou o incitamento público ao riso e à gargalhada têm limites? Num Estado de direito democrático, pluralista e laico, os únicos limites objectivos ao exercício da liberdade de expressão são os fixados por lei geral e abstracta (por exemplo: o abuso da liberdade de Imprensa; o direito ao bom nome e reputação), não sendo admissível, todavia, a existência de qualquer mecanismo institucionalizado de censura prévia. Quaisquer outros limites só podem ser de natureza individual e subjectiva, voluntariamente assumidos e aceites por cada cidadão, em nome das suas convicções pessoais (nomeadamente, as religiosas) ou do que considera serem, por exemplo, regras de boa educação e critérios de bom senso e bom gosto.

Plantu, um dos mais notáveis caricaturistas franceses da actualidade (Le Monde, L’Express), invocava há poucos meses a máxima de Pierre Desproges - «on peut rire de tout, mais pas avec n’importe qui» («pode-se rir de tudo, mas não com qualquer um») - reivindicando para si próprio o direito à autocensura. A título de exemplo, invocava o facto de «não entrar na vida privada dos homens políticos». E explicava que «talvez não seja preciso desenhar Maomé para criticar o fundamentalismo». Cá em baixo, na Terra, há alvos mais do que suficientes para caricaturar – barbudos, intolerantes e fanáticos, guias religiosos e chefes políticos (Ahmadinejad e Bush incluídos). Por isso mesmo, diz Plantu, convém «reflectir sobre as nossas responsabilidades antes de embarcarmos em ataques acima das nuvens». Mais: «Podemos ser cáusticos e agressivos, mas sem ódio, sem desprezo, com subtileza, para não cairmos na armadilha dos integristas».

A posição adoptada por Plantu é compreensível e séria, tendo em conta o tipo de publicações em que colabora. Mas decorre de uma opção pessoal do caricaturista e não pode ser erigida em regra. Um jornal satírico dificilmente sobreviveria, se adoptasse tal critério. Por isso, é inteiramente legítima a atitude assumida pelo jornal Charlie Hebdo durante o julgamento de que foi alvo, em Paris, acusado por organizações islâmicas de publicar caricaturas que constituem uma «injúria pública contra um grupo de pessoas devido à sua religião» (a sentença só será conhecida a 15 de Março). Como sublinhou o seu director, Philipe Val: «Em terra laica, a religião não é um poder político. E, quando pretenda sê-lo, é preciso que ela aceite ser repelida para o domínio privado que é o seu». Sempre que qualquer religião revele o desejo de impor as suas regras a uma sociedade democrática - que é, por natureza, laica - tem de ser tratada exactamente de acordo com aquilo que é: «uma ideologia como qualquer outra, sujeita a todas as críticas».

Tão importante como não cairmos na armadilha dos integristas, com diz Plantu, é não cairmos na armadilha da nossa própria tolerância. O processo do Charlie Hebdo é um claro aviso. É essencial não dobrar a espinha. É preciso não ceder ao medo!

«DN-6ª» - 2 Mar 07

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