quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

NÃO É CÓMODO SER DE ESQUERDA



O EURODEPUTADO e famoso ex-ministro da Saúde de um governo do PS, António Correia de Campos, escreveu no Público, em 21 de Janeiro passado, que «o povo não come ideologia». Claro que não! Tal como não come música, literatura, artes plásticas, cinema e muitas outras coisas consideradas fúteis pelos economicistas de serviço. Ao contrário dos hamburgers da McDonald’s, por exemplo… Ou dos bifes que a drª Isabel Jonet acusou o povo de comer todos os dias, para ruína da pátria e da república… E quem não se recorda daquele ministro de Berlusconi que se atreveu a contrariar jornalistas que insistiam em falar-lhe de Cultura, dizendo que «a ‘Divina Comédia’ não serve para comer porque com ela não podemos fazer sanduíches»?!
«O povo não come ideologia» é uma frase muito batida, normalmente utilizada pela direita ou por políticos oriundos da extrema-esquerda sempre em trânsito para a direita. É característica do pragmatismo sem princípios que tomou conta dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas membros da Internacional Socialista, na última década do século passado, a partir da fracassada Terceira Via teorizada por Anthony Giddens e adoptada por Tony Blair, Gerhard Schroeder, António Guterres e «tutti quanti» por essa Europa fora. No fundo, não passou de uma conversão encapotada às delícias do neoliberalismo. Foi uma abdicação ideológica que os tornou comparsas da direita e reforçou o «rotativismo» no poder, com as mordomias que ele confere e os tachos que permite distribuir.
«Ser de esquerda não tem necessariamente de ser cómodo. Quase nunca é» - dizia João Martins Pereira, uma referência ideológica para muitos da minha geração. E o que é uma ideologia? Para não complicar as coisas, recorro a um dicionário bem conhecido, o da Porto Editora, que reza assim sobre ideologia: «1. Sistema de ideias, valores e princípios que definem uma determinada visão do mundo, fundamentando e orientando a forma de agir de uma pessoa ou de um grupo social (partido político, grupo religioso, etc.) 2. Estudo da origem e da formação das ideias».
Claro que há ideologias boas e ideologias más, democráticas e totalitárias, pluralistas e intolerantes. Mas, ao contrário do que costuma afirmar a direita (sempre demagógica até ao tutano), não me parece que, em si mesmo, o conceito de ideologia seja um papão. Nem uma sanduíche de Dante. Nem um bife à Isabel Jonet. Aliás, só um «prodígio sem ossos» («boneless wonder», como chamava Churchill a alguns dos seus adversários políticos) é que pode singrar na política sem qualquer quadro de valores e princípios, sem uma visão do mundo que lhe sirva de referência, caminhando aos ziguezagues, recorrendo à navegação de cabotagem por incapacidade de se fazer ao largo e de correr riscos, definindo novos rumos e tentando mudar o estado das coisas para que os cidadãos consigam viver melhor, numa sociedade menos desigual, mais justa e mais solidária.
Um «prodígio sem ossos» não faz grandes ondas, provoca apenas uma ligeira ondulação enquanto aguarda tranquilamente a sua vez para regressar ao poder. A Internacional Socialista está cheia de «prodígios sem ossos» ansiosos por agradar a plutocratas, banqueiros, grandes empresas e seus accionistas, gestores e patrões. A Internacional Socialista está em crise profunda porque os partidos que dela fazem parte cortaram as suas raízes históricas, abdicaram de ter um pensamento próprio, autónomo, original, e julgaram erradamente que se renovavam catrapiscando ideias e propostas dos seus adversários da direita neoliberal e neoconservadora. Os resultados estão à vista. De facto, não é nada cómodo ser de esquerda…

«Público», 6 Fev 13

2 comentários:

Alberto Colima disse...

Bom artigo. Parabéns

Carlos Esperança disse...

A liberdade é o terreno fértil da criação.

Excelente colheita.