sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

«NÃO HÁ ALTERNATIVA – TRINTA ANOS DE PROPAGANDA ECONÓMICA» – DE BERTRAND ROTHÉ E GÉRARD MORDILLAT

(Apresentação do livro)

1.
COMEÇO por uma constatação: o capitalismo desregulado e sem controlo – que tem prevalecido no mundo durante as últimas três décadas (1980-1990-2000), e que nos mergulhou nesta crise brutal cujo fim não está à vista – tornou-se incompatível com a democracia.
Porque a democracia não é apenas um princípio político – a regra da maioria. É também um princípio social – a constante procura da igualdade de condições.
Ora, aquilo a que hoje assistimos em todo o mundo é ao preocupante aumento das desigualdades e à escandalosa concentração da riqueza nas mãos de uma ínfima minoria de ultra-privilegiados.

2.
ESTE magnífico livro panfleto contra a doutrina neoliberal explica-nos, com bastante clareza e poder de síntese, como tudo começou, há 30 anos – com Margaret Thatcher (na Grã-Bretanha, desde 1979) e com Ronald Reagan (nos EUA, desde 1981).
E identifica, também, as duas principais fontes da doutrina, que são:
– Friederich von Hayek (1899-1992), o ‘deus’ criador da ‘religião’ neoliberal e fundador da respectiva ‘igreja’ (a pouco conhecida Société du Mont-Pélérin criada na Suíça em 10 de Abril de 1947), e também autor de um best-seller anticomunista – mas, sobretudo, contra o Estado-Providência – intitulado «O CAMINHO DA SERVIDÃO» (que mereceu uma versão abreviada distribuída em 600 mil exemplares pela Reader’s Digest, em 1947);
– e Milton Friedman (1912-2006) (também membro da Société du Mont-Pélérin), ‘papa’ da ‘igreja’ neoliberal e autor do livro «CAPITALISM AND FREEDOM» (publicado em 1962). Foi ele quem forjou os conceitos fundamentais da doutrina e organizou a famosa Escola de Chicago (monetarista) – que se tornaria um viveiro do neoliberalismo, e serviria de base às políticas económicas de Reagan e Thatcher.

3.
PARA Hayek e para Friedman, tal como para os seus discípulos e seguidores: «não há alternativa ao capitalismo»; pior ainda: «não há alternativa ao (neo)liberalismo».
Ora, o título principal deste livro – «NÃO HÁ ALTERNATIVA» – é precisamente a tradução de uma famosa frase proferida por Margaret Thatcher, «There Is No Alternative», cujo acrónimo é TINA.
Como afirmam os autores do livro – o economista Bertrand ROTHÉ e o escritor e cineasta Gérad MORDILLAT – «TINA é a arma ideológica inventada pela minoria neoliberal para impor ao mundo as suas opções. Ao repetir que ‘não há alternativa’, o novo establishment transforma o jogo político num ultimato permanente. Ponto final na reflexão. Ponto final no debate democrático. Doravante, a mensagem é a seguinte: ‘Votem em nós ou irão desaparecer’. É um simplismo, um pensamento único».
«A contra-revolução neoliberal é essencialmente antidemocrática» – já o afirmou Paul Krugman. «De facto, nenhuma maioria de eleitores desejaria reduzir a cobertura social que protege a generalidade dos cidadãos. Nunca. O único meio de forçar a mão do povo é levá-lo a acreditar que não há alternativa» - acrescentam ROTHÉ e MORDILLAT.

4.
NA SUA obra «CAPITALISM AND FREEDOM», Milton Friedman explica-nos que, como a obtenção do lucro é a essência da democracia neoliberal, todo o governo que conduza políticas que contrariem o mercado está a portar-se de forma antidemocrática – sendo irrelevante o apoio de que goze por parte de uma população esclarecida.
Foi esta visão absolutamente perversa da democracia que fez com que ele próprio e Friederich Hayek não levantassem quaisquer objecções ao golpe de Estado do general Augusto Pinochet, no Chile – que depôs, em 1973, o governo democraticamente eleito do presidente Salvador Allende, – dado que este estava a interferir com o controlo dos negócios da sociedade chilena.
Friederich Hayek foi mesmo ao ponto de declarar, em defesa do indefensável Pinochet, o seguinte: «Pessoalmente, prefiro uma ditadura liberal a um governo democrático completamente alheado do liberalismo».
Foi essa «ditadura liberal», brutal e selvagem, que os Chicago boys de Milton Friedman ajudaram a sustentar durante 15 anos, transformando-a num autêntico laboratório experimental das políticas neoliberais preconizadas e ensinadas por Hayek e Friedman.

5.
ENTRETANTO, ficou a saber-se há pouco tempo que Friedrich Hayek, o ‘profeta’ venerado pelo general Pinochet e por Margaret Thatcher, não quis visitar os EUA em 1973 – a convite do milionário norte-americano Charles Koch, um dos pilares do desmantelamento do Estado-Providência – por ter medo de perder os seus direitos à Segurança Social no seu país, a Áustria.
Hayek – que nos seus discursos e palestras proclamava que a Segurança Social é «essencialmente um absurdo» que urge banir – explica com todo o detalhe, na correspondência que trocou com Charles Koch, os benefícios sociais a que tinha direito, e que não queria arriscar-se a perder.
Para além da hipocrisia pessoal, o que aqui se manifesta é a hipocrisia de um discurso que consiste em fazer crer às pessoas que se pretende proteger a sua responsabilidade e a sua liberdade de escolha – quando elas são despojadas dos seus direitos sociais e do seu dinheiro para encher os bolsos da ínfima minoria dos mais ricos do planeta.

6.
TAMBÉM se tornou patente que o sistema neoliberal gera um importante e inevitável subproduto: uma cidadania despolitizada, caracterizada pela apatia e pelo cinismo.
O neoliberalismo é o primeiro e imediato inimigo de uma genuína democracia participativa. Claro que actua melhor quando existe uma democracia eleitoral formal, mas precisa que a população seja desviada das fontes de informação e dos debates públicos que a habilitem a formar opinião e a intervir nos processos de tomada de decisão.
A partir da noção crucial de «mercado über alles», a democracia neoliberal cria centros comerciais em vez de espaços comunitários e produz consumidores em vez de cidadãos. E o resultado prático é uma sociedade atomizada, constituída por indivíduos desenraizados que se sentem desmoralizados e socialmente impotentes.

7.
NÃO QUERO roubar aos presentes o prazer da leitura deste livro revelador, mas vale a pena evocar alguns factos e números que marcam a experiência do neoliberalismo – doutrina responsável por aquilo a que costumo chamar «ditadura financeira de fachada democrática».
Antes de mais, um exemplo de retrocesso, que os autores do livro registam logo nas primeiras páginas:
– Durante as três décadas que se seguiram à II Guerra Mundial (1950-1960-1970), os patrões das grandes empresas recebiam entre 40 a 50 vezes mais do que o salário de um operário, ao passo que hoje recebem entre 400 a 500 vezes mais (historiadores americanos chamaram a esse fenómeno «the great compression» («a grande compressão») por analogia com «a grande depressão»).
Depois, o balanço dos 15 anos de governação Margaret Thatcher (1979-1990), está longe de ser famoso:
– Com a «Dama de Ferro», o egoísmo voltou a ser uma virtude, reflexo e prolongamento das privatizações, da maximização dos lucros, das inúmeras reestruturações, do desemprego, da destruição do poder dos sindicatos, do desenvolvimento do offshore, da desregulamentação, da desindustrialização, da multiplicação de serviços de todo o tipo e da criação de um imposto regressivo (concebido de forma a que, os muitos que têm rendimentos mais baixos, paguem proporcionalmente mais do que os poucos que têm rendimentos mais altos);
– O resultado desta política foi um brutal aumento das desigualdades e um crescente endividamento das classes médias (iludidas pela facilidade de acesso ao crédito e à propriedade imobiliária e mobiliária);
– Além disso, o desemprego triplicou, atingindo, em meados de 1981, o record de 3 milhões de desempregados (eram menos de 1 milhão quando Thatcher tomou posse, em 1979);
– E a inflação duplicou entre 1979 e 1981 (passando de 10 % para cerca de 20 %, e continuando nos dois dígitos no final da década de 1980), apesar de Thatcher ter imposto uma política de austeridade, com o objectivo prioritário de reduzir a inflação, e que conduziu o país a uma grave recessão.
Também o resultado das políticas de Reagan – que ficaram a ser conhecidas pela expressão «Reaganomics» – está longe de ser famoso:
– Os quatro pontos cardiais da «Reaganomics» eram: diminuir as despesas públicas («O Estado não faz parte da solução, faz parte do problema», dizia Reagan); baixar os impostos (dos mais ricos); desregulamentar (a actividade económica e financeira); acabar com a inflação;
– Mas o maior dano que Ronald Reagan causou foi no défice orçamental, ao retirar biliões de dólares do erário público para financiar a famosa «guerra das estrelas». O anticomunismo visceral de Reagan sobrepôs-se, neste caso, às suas tão proclamadas convicções neoliberais, afirmando, contra todas as evidências, que: «É possível baixar os impostos, aumentar as despesas do Pentágono e equilibrar o orçamento». Aumentou maciçamente o orçamento da Defesa, mas deu origem a um défice orçamental abissal (que se tornaria estratosférico com George W. Bush, na década de 2000).

8.
A PARTIR do final da década de 1970, assistimos a uma espécie de «revolução silenciosa» que criou «uma nova classe de ultra-privilegiados, ‘que enriquecem mesmo enquanto estão a dormir’» (no espaço de 40 anos, por exemplo, cada 10 euros investidos em acções foram multiplicados por 45).
Simultaneamente, «sem grandes conflitos, sem aparente violência, por vezes até com o assentimento popular, os dirigentes económicos tomaram o poder» e remeteram os políticos para um plano secundário. Esta vitória do capitalismo ultraliberal teve por preço um aumento brutal das desigualdades, alargando o fosso que separa a ínfima minoria de ultra-privilegiados da esmagadora maioria das classes médias e das classes populares.
Aumentaram os rendimentos das elites, a rentabilidade das empresas, assim como os rendimentos e patrimónios dos accionistas, beneficiados pela nova regra de pelo menos 15 % de rentabilidade dos investimentos.
Com esta nova regra, inverteram-se as relações de força entre o capital e o trabalho, entre os accionistas e os assalariados. Passou a prevalecer o partido do dinheiro, apesar de ser ultraminoritário. Em 2005, cerca de 300 milhões de accionistas – 90 % dos quais concentrados na América do Norte, na Europa Ocidental e no Japão – controlavam a capitalização bolsista mundial.

9.
O NEOLIBERALISMO acabou por instalar progressivamente na sociedade uma «economia do medo» e um «estado de excepção permanente» – através da propaganda a cargo dos fast thinkers e dos «Lucky Luke da economia» – e graças ao controlo dos principais meios de comunicação (propriedade dos grandes grupos económicos).
Os fast thinkers, como lhes chamava Pierre Bourdieu, são os intelectuais e editorialistas mediáticos sempre prontos a intervir no imediato em defesa dos poderes do dia, do «partido do dinheiro», do establishment económico e financeiro neoliberal.
Os «Luky Luke da economia», são os economistas, os ex-ministros das Finanças frustrados e os jornalistas económicos que aparecem constantemente nas televisões a pensar «mais depressa do que a própria sombra», a reciclar ideias e homens a uma velocidade surpreendente, e que são capazes de defender tudo e o seu contrário, para intimidar os cidadãos e defender o «partido do dinheiro».
Como afirmam os autores deste livro: «Hoje, o medo tornou-se uma forma habitual de gestão das empresas, e mesmo da própria governação. Um medo que deve justificar tudo, e tudo mergulhar num nevoeiro suficientemente espesso para que os responsáveis pelas catástrofes económicas não sejam nunca postos em causa e possam escapar graças a várias argúcias».
Como escreve o economista e jornalista espanhol Joaquín Estefania no seu livro «LA ECONOMIA DEL MIEDO» (publicado em Novembro passado): «Hoje, já não se trata apenas dos temores tradicionais à morte, ao inferno, à doença, à velhice, à vulnerabilidade, ao terrorismo, à guerra, à fome, às radiações nucleares, aos desastres naturais, às catástrofes ambientais, mas também – e convém não banalizar as diferenças – do medo a esse novo poder fáctico a que chamam ‘a ditadura dos mercados’, que tende a reduzir os benefícios sociais e as conquistas da cidadania económica do último meio século; medo a ficar sem esse bem cada vez mais escasso que se chama trabalho, medo a que se reduza o nosso poder de compra, medo ao subemprego, medo à marginalização económica e social».
Foi a este ponto que chegámos 30 anos depois do início da «contra-revolução neoliberal». E é aqui que estamos, sem sabermos ainda muito bem como sair desta crise esmagadora e terrível. Mas há, tem de haver, alternativas!
Entretanto, é bastante útil ler este livro, muito bem traduzido por João Carlos Alvim e oportunamente editado pela VEGA, apenas seis meses depois da sua publicação em França.

Livraria Barata, Lisboa, 14 de Dezembro de 2011

2 comentários:

Bmonteiro disse...

Um bravo e um obrigado pelo texto, mas.
Que esperar do progresso material, organização e tecnologias da informação, senão um enorme exército de desempregados?
Quanto ao domínio da política pela economia, duvido que alguma vez tenha sido diferente. Substitua-se economia por interesse, pessoal, familiar, de grupo ou de empresas.
Caso EDP: perante a Alemanha, a China e o Brasil, como encaixar aqui o "interesse" de Portugal?
Voltado para o Império do futuro (China), para a Alemanha da UE, ou para o triângulo Portugal-Brasil-Angola?
Quem são os 'influentes' pelo concurso e que interesses perseguem?
Que os estados tenham dispensado a responsabilidade pela emissão/fabrico de moeda, onde havia de levar senão ao que aí está?
PS: a minha compreensão pela sua reacção ao livro do doutor Mário Soares, como costumo dizer, Sexa Vaidade Soares.

Bmonteiro disse...

Quanto a "Alternativa",
e pese o último desabafo de Jorge Sampaio.
Uma sociedade tipo comunista ou socialista, ou uma selva primitiva como a que já é perceptível?
Quanto à antiga via intermédia, parece que já foi: Teilhard de Chardin, quando parecia valer a pena.