terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O PS NO «CENTRO DO CENTRO» E A AUTO-REPRODUÇÃO DAS OLIGARQUIAS PARTIDÁRIAS

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NA SUA CRÓNICA semanal publicada no DN em 1 de Fevereiro, Mário Soares considera ter chegado o momento para o PS «fazer uma reflexão aprofundada», com o objectivo de «dar um novo impulso à sua participação na vida política (independentemente do Governo), com mais idealismo socialista e menos apparatchiks, mais debate político e menos marketing, mais culto pelos valores éticos e menos boys que só pensam em ganhar dinheiro e promover-se».
A primeira reacção oficial da direcção do PS não se fez esperar, por via do inevitável José Lello, membro do seu secretariado nacional, que se apressou a desvalorizar as opiniões do principal fundador do partido: «O PS só tem uma única preocupação: governar o País e defender o País. É esse o nosso objectivo ideológico e é nisso que devemos concentrar-nos. Tudo o resto é secundário».
Antes de mais, duas observações de pura forma: «governar o País e defender o País», são duas preocupações e não «uma única»; e qualquer delas não é um «objectivo ideológico», mas sim político. José Lello tem de cuidar da gramática e recorrer mais vezes ao dicionário, porque a língua portuguesa é muito traiçoeira.
Depois, há que dizer que José Lello é assim uma espécie de «reflexo pavloviano» da oligarquia partidária que dirige o PS. Quando alguém bate com demasiada estridência no portão da sua quinta, Lello reage e ataca sem pensar, atirando-se cegamente às pernas de quem ele julga ser um intruso, e fica radiante quando lhe rasga as calças.
Para Lello e outros apparatchicks, que, como ele, vivem à sombra do «aparelho» do partido, Mário Soares já é considerado um «intruso», tal como Manuel Alegre ou Manuel Maria Carrilho, para só referir mais dois exemplos de fresca data. Como todo o apparatchick que se preza, Lello é totalmente incapaz de formular um discurso político que seja interessante e mobilizador. Além de não se lhe conhecer qualquer ideia original, recusa-se terminantemente a reflectir sobre o que quer que seja.

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JOSÉ LELLO é um «case study», que nos permite compreender melhor como é que os partidos continuam a funcionar em circuito fechado. Citando Robert Michels, um dos maiores autores clássicos especializados no estudo dos partidos políticos em democracia, José Lello faz parte «de um exército de dirigentes intermédios ou inferiores profissionalizados – os chamados bosses e wirepullers (literalmente: «os que manobram os fios», isto é, os «intriguistas») –, sem qualquer aprofundamento teórico a guiar a sua acção, mas sob as ordens de um dirigente superior com talento estratégico».
A obra fundamental de Robert Michels – «Para uma sociologia dos partidos políticos na democracia moderna. Investigação sobre as tendências oligárquicas dos agrupamentos políticos» – foi publicada pela primeira vez em 1910, mas só em 2001 foi traduzida e editada em português (1).
Cem anos passados, a sua actualidade continua a ser impressionante. Michels apresenta-nos inúmeros exemplos sobre o modo como a direcção das grandes máquinas políticas é progressivamente açambarcada por uma classe profissional que vai afastando paulatinamente os militantes.
Graças ao conhecimento das questões essenciais e à sua experiência política, essa classe profissional acaba por se tornar indispensável. A sua «ciência» dos mecanismos internos (o chamado «aparelho») e a habilidade para utilizar as regras do jogo (que conhece e manipula como ninguém) preservam-na de ser derrubada por súbitas inversões de maioria.
Essa classe profissional adquire, assim, uma inamovibilidade quase absoluta: a sua renovação praticamente só se opera pelo efeito da idade e, mesmo assim, essa substituição de gerações é cuidadosamente controlada e circunscrita. Os dirigentes partidários demonstram, aliás, especial mestria no trabalho de dissolução das oposições virtuais, quer absorvendo os seus líderes, quer empurrando-os para fora do partido.
Em suma: qualquer possibilidade de rejuvenescimento ou renovação global está condenada à partida. A democracia, que é participação de todos na direcção, deixa assim de ser exercida no interior dos partidos.
Foi a esses poderosos mecanismos de preservação e auto-reprodução da classe profissional que domina os partidos políticos, que Robert Michels chamou a «lei de bronze» ou «lei férrea da oligarquia partidária».
Diz ele que «as correntes democráticas, ao longo da história, fazem lembrar a rebentação contínua das ondas. Quebram sempre no momento em que se enrolam e se abatem com fragor. Mas renascem sempre». O que sucede é que, muitos daqueles que erguem as vozes contra os «privilégios oligárquicos», também «acabam por se dissolver na classe dominante», depois de «um período de participação cinzenta na dominação».
Por isso mesmo, remata Robert Michels, «não tem fim este drama que ferozmente se desenrola entre o incansável idealismo dos mais jovens e a incurável sede de poder dos mais velhos. Há sempre novas ondas a rugir no mesmo ponto de rebentação. E é essa a marca mais profunda e mais característica da história dos partidos políticos».

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NO INTERIOR dos partidos que alternam no poder, ou seja, no governo, há igualmente o problema, referido por Mário Soares na sua crónica, dos «boys que só pensam em ganhar dinheiro e promover-se».
É um problema cruciante nas democracias modernas, consequência daquilo a que Donatella Della Porta, professora de Administração Local na Universidade de Florença, considera ser uma «quebra progressiva da tensão ideológica, que deixou um vazio ao nível dos princípios éticos» (2).
Essa «quebra dos estímulos ideológicos» abriu caminho a indivíduos mais sensíveis a motivações materiais, ou seja, à defesa dos seus interesses pessoais. E, de facto, a falta de pessoal qualificado capaz de desempenhar funções de direcção política e de gestão da «coisa» pública, passou a ser compensada pela «oferta» de uma nova classe de «oportunistas» atraídos por aquilo que a política lhes pode oferecer, tanto ao nível local como ao nível nacional, para multiplicarem os seus proventos pessoais.
É evidente que a «quebra da tensão ideológica» diminui bastante a capacidade dos partidos para formularem programas e políticas públicas consistentes e coerentes, em benefício da generalidade dos cidadãos. Clientelismo, nepotismo e patrimonialismo condicionam inevitavelmente a visão e os objectivos daqueles que detêm os poderes de decisão.
Assistimos, então, àquilo que se designa por «gestão clientelar» das ofertas de emprego na administração pública e nas empresas públicas, das nomeações políticas efectuadas pelos partidos, das adjudicações de obras e serviços públicos, e do favorecimento de certas empresas privadas.
«As práticas clientelares e de governo paralelo», como também são designadas, «transformaram os próprios partidos». Enfraqueceram a sua capacidade para canalizar, traduzir e corresponder às necessidades daqueles que representam – os representados – e, em contrapartida, «reforçaram a sua tendência para proporcionar vantagens aos seus representantes».
Toda esta intrincada teia de interesses e conivências – caracterizada pela emergência de indivíduos que a especulação enriqueceu rapidamente, pela arrogância dos novos poderosos e a corrupção das elites, pelo aumento significativo das necessidades financeiras dos partidos políticos e pelo total desprezo votado à moral do serviço público – torna muito difícil imaginar «um novo impulso» democrático, uma grande transformação política e uma verdadeira renovação ideológica dos partidos que alternam no poder.

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NO MAIS recente livro que publicaram sobre «O Poder Presidencial em Portugal» (3), André Freire e António Costa Pinto salientam um aspecto bastante interessante e significativo, que tem muito a ver com a «quebra da tensão ideológica» de que tenho vindo a falar.
No balanço que fazem do primeiro mandato do actual Presidente da República, referem que Cavaco só utilizou «o veto político face a diplomas da Assembleia da República». Por outro lado, «as divergências políticas de Cavaco Silva face à maioria parlamentar (expressas através dos vetos) foram apenas nas áreas socioculturais e morais (estilos de vida, ‘novos temas’: paridade, divórcio, uniões de facto) e nas questões institucionais (Estatuto Político Administrativo dos Açores, etc.), deixando de fora os temas sócioeconómicos (que estão no âmago da divisão entre esquerda e direita)». E, mais adiante, insistem: «Pelo menos tanto quanto é possível inferir do exercício dos poderes de veto», Cavaco Silva «não terá divergido muito da maioria das orientações da maioria parlamentar (PS) em questões socioeconómicas (o âmago da divisão esquerda-direita)».
Os autores atribuem este comportamento do actual Presidente a dois factores: primeiro, a «uma significativa inflexão do PS para o centro do centro»; segundo, a «um certo centrismo ideológico do Presidente Cavaco em questões socioeconómicas».
Ora, o «centro do centro» é aquilo a que um grande constitucionalista e especialista no estudo dos partidos políticos, Maurice Duverger, chamou o «juste milieu». E é hoje evidente que ele tinha razão ao afirmar, há mais de 40 anos, que «o centrismo favorece a direita».
Vejamos o que ele escreveu no livro «La democratie sans le peuple» (4), publicado em 1967: «O centrismo favorece a direita. Aparentemente, as coligações do ‘juste milieu’ são dominadas ora pelo centro-direita, ora pelo centro-esquerda, seguindo uma oscilação de fraca amplitude. (…). Estas aparências mascaram uma realidade completamente diferente. Por trás da ilusão de um movimento pendular, o centro-direita domina quase sempre. (…). Em vez de implicar uma transformação lenta mas regular da ordem existente, a conjunção dos centros desemboca no imobilismo, ou seja, no triunfo da direita».
No mesmo livro, Duverger também comenta a tendência para «uma esquerdização do vocabulário político», nos seguintes termos: «O centro quer chamar-se esquerda, a direita quer chamar-se centro, e ninguém quer chamar-se direita». Em Portugal, actualmente, o PS, o PPD-PSD e o CDS-PP são ilustrações perfeitas do que Duverger quis dizer.

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O «CENTRO DO CENTRO» («juste milieu») é o território propício a todas as renúncias ideológicas e a todas as abdicações políticas, sempre em nome dos superiores interesses do Estado ou da Nação, consoante a carapaça em que cada partido político quer enfiar-se.
Mas é grande o prejuízo para a democracia, que é sustentada por quatro pilares resultantes da articulação entre duas tradições diferentes: por um lado, os pilares da liberdade individual e do pluralismo, nos quais assenta a tradição liberal; por outro lado, os pilares da soberania popular e da igualdade, nos quais assenta a tradição democrática.
Liberalismo e democracia são valores diferentes e, como nos explica Chantal Mouffe, politóloga e professora da Universidade de Westminster, «a história das democracias liberais caracterizou-se pela luta, por vezes violenta, entre forças sociais cujo objectivo era estabelecer a supremacia de uma tradição sobre outra» (5).
Hoje, porém, a moldura ideológica dominante assenta, por um lado, no «mercado livre» e, por outro, nos «direitos humanos». E «o que é mais espantoso é que a referência à soberania popular – que constitui a coluna vertebral do ideal de democracia – foi praticamente eliminada da definição actual de democracia liberal». A soberania popular é considerada, por estes dias, como «uma ideia obsoleta» e «um obstáculo à implementação dos direitos humanos».
Sob a bandeira da «modernização» – empunhada na década de 1990 por Tony Blair («New Labour») e Gerhard Schröder («Novo Centro») – os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas europeus passaram a identificar-se quase exclusivamente com as classes médias e deixaram de representar os interesses das classes mais populares, cujas reivindicações foram consideradas «arcaicas» ou «retrógradas».
Não deverá, por isso, surpreender-nos a crescente alienação de um número cada vez maior de grupos que se sentem excluídos do exercício efectivo da cidadania pelas «elites iluminadas». Chantal Mouffe salienta que é a incapacidade dos partidos políticos democráticos para «proporem formas distintas de identificação em torno de alternativas possíveis que cria o terreno propício ao florescimento do populismo de direita».
É ilusório pensar que vivemos em sociedades pós-políticas, das quais foram erradicados todos os antagonismos políticos. Não é concebível uma política consensual mais além da esquerda e da direita. Nem sequer existem soluções imparciais na política. A «hegemonia neoliberal» deu lugar a um défice democrático que é urgente colmatar, e a desigualdades económicas, políticas e sociais crescentes, que é preciso questionar e combater.
É indispensável reactivar a noção de soberania popular como pilar essencial da democracia. Sem ela, não é possível recuperar a confiança nas instituições europeias, combater as desigualdades sociais gritantes geradas pela gravíssima crise económico-financeira, e recuperar o prestígio perdido pelos partidos políticos democráticos.
A noção de soberania popular traz implícita a ideia de participação alargada dos cidadãos na vida política e de intervenção na «coisa» pública. Sem essa participação activa, não será possível proceder a uma renovação ideológica dos partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas.
As oligarquias partidárias instaladas no centro do centro praticam um pragmatismo sem princípios totalmente avesso à renovação. O «idealismo» inquieta-as, um «novo impulso» arrepia-as. Se as assustarem muito, soltam apparatchiks como José Lello e mandam à fava o debate político.

Lisboa, 13/Fevereiro/2011
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(1) «Para uma sociologia dos partidos políticos na democracia moderna», Robert Michels, tradução de José M. Justo (ANTÍGONA, Lisboa, 2001)

(2) «Les cercles vicieux de la corruption», Donatella Della Porta in «Démocratie et corruption en Europe» (Éditions La Découverte, Paris, 1995)

(3) «O poder presidencial em Portugal», André Freire e António Costa Pinto (D. Quixote, Lisboa, 2010)

(4) «La Démocratie sans le peuple», Maurice Duverger (Éditions du Seuil, Paris, 1967)

(5) «El ‘fin de la política’ y el populismo de derecha», Chantal Mouffe (Claves de razón prática, nº 199, Madrid, Janeiro/Fevereiro de 2010)

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Publicado no jornal «i» em 15 de Fevereiro de 2011

2 comentários:

Jorge Manuel Brasil Mesquita disse...

Excelente artigo, Senhor Alfredo Barroso. O Senhor foi ao centro da questão, ao apontar todos os anátemas que afligem, neste momento, o Partido de que o Senhor faz parte. Ideológicamente, o PS, é um vazio, e, ao apontar, como exemplo, o Senhor José Lello, demonstra que reconhece, nele, o tipo de personalidades vazias de conteúdo e de retóricas, esclerosadas e confinadas ao discurso decadente do aparelho «socialista», sendo isso visível nos seus recados vocabulares de arcaísmos políticos e de insultos gratuitos contra quem demonstra acutilância crítica e discordância partidária.
O artigo é exemplar e demonstra as fraquezas ideológicas e, até, em alguns pontos, desconhecimento do que é a Democracia e de como ela deve funcionar. O PS da inovação tecnológica é um partido esclerosado quando se confronta com o pensamento livre e com a crítica mais contundente. Assim são alguns do seus mais destacados membros e muitos dos seus militantes. Tudo isto é visível em todos os locais por onde passam e onde vivem e trabalham.
Jorge Manuel Brasil Mesquita
Lisboa, 16/02/2011

Bartolomeu disse...

Talvez fosse positivo para o PS, a aparição num congresso de um novo Tino de Rans, menos gago, mais lúcido e... mais proféticamente acertivo. Uma limpeza(zinha) ao pessoal do avental, também era capaz de ser um bom remédio.