sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

ÚLTIMOS CIGARROS

HÁ O ALCATRÃO, a nicotina e o monóxido de carbono. Bem sei. Mas há, também, o polónio-210 (210Po), «a pior de todas as substâncias», descoberto em 1898 por Pierre e Marie Curie. É mil vezes mais tóxico do que o plutónio e um milhão de vezes mais do que o cianeto. Dez microgramas bastam para matar, lenta e irreversivelmente. Como no caso do ex-espião soviético Alexandre Litvinenko, envenenado por essa dose letal, que lhe devorou todos os glóbulos vermelhos nas últimas semanas de 2006.

Como explica Fabien Gruhier, num artigo publicado em Le Nouvel Observateur, o polónio-210 está omnipresente na natureza e, mesmo, no organismo humano, embora em concentrações ínfimas, já que é permanentemente produzido pela desintegração do urânio e do tório, abundantes na crosta terrestre. Todavia, os fumadores absorvem mais polónio do que os não fumadores, por causa dos fosfatos ligeiramente radioactivos que são utilizados como fertilizantes nos campos de tabaco. Pior: em estudo científico feito nos EUA afirma-se que a inalação de polónio «natural», via fumo do cigarro, «contribui pelo menos em 90 por cento para os cancros do pulmão dos fumadores».

Aconselhado por um médico especialista, que nem sequer me falou do polónio e me poupou a um sermão sobre os malefícios do tabaco, preparo-me para fumar o último cigarro dentro de poucos dias. O primeiro impulso que tive, nem foi o de reler o célebre monólogo de Tchekov, que interpretei aos 18 anos, mas sim o de voltar a folhear a obra-prima de Ítalo Svevo, A Consciência de Zeno, publicada em 1923 (a Editorial Minerva deu à estampa uma versão portuguesa, pouco rigorosa e sem qualquer data). Espero bem que não me aconteça o mesmo que a Zeno Cosini, com as tentativas repetidas, inúteis e tragicómicas para deixar de fumar enquanto reflecte sobre a sua existência.

As reflexões e interrogações do protagonista, Zeno (ou do escritor, Ítalo Svevo, pseudónimo de Ettore Schmitz), fazem todo o sentido. É pior o vício, ou a obsessão de se libertar do vício? A doença, ou a obsessão da doença? Os dias cheios de cigarros, ou os dias plenos de promessas de não fumar mais? Não será só quando uma coisa ou uma pessoa está a ponto de se perder que o prazer se inflama? Como diria o velho higienista de Goldoni, quererei morrer são, depois de ter passado toda a vida doente? A vida – diz Zeno – parece-se um pouco com a doença. A grande diferença, relativamente às outras doenças, é que a vida é sempre mortal. E não suporta qualquer tratamento.

No leito de morte, após um acidente de automóvel, o escritor viu um sobrinho a fumar e pediu-lhe um cigarro. O sobrinho disse-lhe que não. E Svevo, já com a língua entaramelada, balbuciou: «Este seria verdadeiramente o último cigarro». Foi em 1928. Quase 80 anos depois, espero bem que o semáforo vermelho que me acenderam – e, já agora, o polónio-210 – me intimem a fumar o último cigarro daqui a uns dias.

«DN» - 02 Fev 07
http://sorumbatico.blogspot.com/2007/02/ltimos-cigarros.html

3 comentários:

Anónimo disse...

Paarabéns pela iniciativa!

R.

In. disse...

Boa ideia este blogue mas, ja agora, vai falando de outras coisas.... Um abraço grande do Mario

In. disse...

Nao percebo porque assino Ingrid, mas nao tenho nada contra:):):)