sexta-feira, 20 de julho de 2012

UM «ESQUERDISTA» CHAMADO ÁLVARO

CRITICANDO os presumíveis «esquerdistas» que insistem na necessidade de Portugal renegociar e reestruturar a dívida pública, um famoso sociólogo outrora estalinista e agora ao serviço de um grande merceeiro perguntava, com arrogância e displicência, sentado à mesa quadrada de um debate na televisão: «Renegociar? Mas renegociar o quê?». O sorriso cúmplice dos seus parceiros de mesa confortou o famoso sociólogo na ideia de que tinha acabado de fazer uma pergunta genial e, no mínimo, arrasadora para a canalha esquerdista que por aí prolifera.
E, no entanto, ela move-se – a ideia da necessidade de renegociar a dívida pública. E nem é preciso recorrer a um perigoso esquerdista para a explicar. Basta folhear o capítulo 8 de um «tijolo» de quase seiscentas páginas publicado em Abril de 2011 por Álvaro Santos Pereira, ministro da Economia desde Junho de 2011, intitulado «Portugal na hora da verdade – como vencer a crise nacional».
Para explicar «o caminho tortuoso que temos de percorrer», avisa-nos o famoso autor que, «para que seja sustentável, a dívida pública nacional tem de crescer a um ritmo inferior ao crescimento económico». Ora, «de acordo com os cálculos do FMI, para ser sustentável, a dívida pública nacional exige que as autoridades económicas portuguesas consigam alcançar excedentes orçamentais primários a rondar os 4 % ou 5 % anuais, algo que nunca foi alcançado na era democrática». (Estará o nosso Álvaro a apelar a um novo salazarismo?).
Seja lá como for, explica-nos o consagrado autor que, mesmo recorrendo a «eventuais receitas das privatizações», à «venda de imóveis» do Estado, ou a uma «hipotética venda de parte das reservas de ouro à guarda do Banco de Portugal», «a verdade é que a nossa dívida pública alargada é de tal modo elevada, que é provável que nem assim consigamos pagá-la nas próximas décadas». Ora, «face aos exorbitantes montantes da nossa dívida e ao crescente peso dos juros, é bastante possível que, mais cedo ou mais tarde, um governo português se declare impotente para pagar a totalidade da dívida pública». Ou seja – remata Álvaro – «é muito possível que cheguemos a uma situação em que o Estado português se veja forçado a reestruturar a sua dívida pública junto dos credores internos e externos». Mais: «é igualmente possível, e provavelmente desejável, que essa renegociação seja levada a cabo ao mesmo tempo que uma reestruturação da dívida de outros países europeus». (Leu bem: Álvaro fala claramente em «renegociação»!).
Foi deste modo que um «esquerdista» chamado Álvaro abraçou a famosa tese da «inevitabilidade de uma reestruturação da dívida dos países europeus em dificuldades», defendida por «economistas proeminentes como Kenneth Rogoff, Barry Eichengreen, Nouriel Roubini, entre muitos, muitos outros» - como Álvaro faz questão de sublinhar com veemência. (Os «esquerdistas» são uma praga!).
Como explica o nosso autor: «Esta reestruturação abrangeria não só um reescalonamento da dívida pública nacional (isto é, uma negociação com os nossos credores de maturidades mais longas para as obrigações do Estado), mas também uma diminuição do valor da dívida (os chamados haircuts da dívida). Mais: a fazer-se esta reestruturação da dívida pública nacional, ela devia englobar não só a dívida pública detida pelos estrangeiros, como também a dívida interna, incluindo uma renegociação das próprias parcerias público-privadas (PPP)».
Et voilá! Aqui temos como um «esquerdista» de direita (passe o absurdo) explica o que há para «renegociar» ao famoso sociólogo ex-estalinista da «nova direita» (aselhas, os cristãos-novos da política!). Note-se que o insigne sociólogo é perito em perguntas obscenas e provocatórias, como aquelas que fez, em 10 de Janeiro de 2012, num canal de tv em que se debatia, nada mais nada menos do que, o «racionamento da saúde». Uma: «Intervenções cirúrgicas depois dos 70, dos 80, dos 90… Até onde é que se deve ir?». Outra: «Pagar hemodiálises a pessoas com mais de 70 anos, faz sentido?». Não, não foi Manuela Ferreira Leite quem colocou a questão, foi ele, e ela limitou-se a secundá-lo na crueldade.
Tal como a um cidadão pobre com mais de 70 anos não se deve recusar a hemodiálise, também a um país pobre com mais de 800 anos não se deve recusar uma bóia de salvação quando está a afogar-se. Discute-se se somos miniatura do Titanic ou réplica do Costa Concórdia. Tanto faz, desde que a direita não nos faça adornar e não nos afunde, garantindo salva-vidas apenas aos que tudo têm.

«DN» de 19 Julho 2012