UM «ESQUERDISTA» CHAMADO ÁLVARO
CRITICANDO os presumíveis «esquerdistas» que insistem
na necessidade de Portugal renegociar e reestruturar a dívida pública, um
famoso sociólogo outrora estalinista e agora ao serviço de um grande merceeiro
perguntava, com arrogância e displicência, sentado à mesa quadrada de um debate
na televisão: «Renegociar? Mas renegociar o quê?». O sorriso cúmplice dos seus
parceiros de mesa confortou o famoso sociólogo na ideia de que tinha acabado de
fazer uma pergunta genial e, no mínimo, arrasadora para a canalha esquerdista
que por aí prolifera.
E, no entanto, ela move-se – a ideia da necessidade de renegociar a
dívida pública. E nem é preciso recorrer a um perigoso esquerdista para a
explicar. Basta folhear o capítulo 8 de um «tijolo» de quase seiscentas páginas
publicado em Abril de 2011 por Álvaro Santos Pereira, ministro
da Economia desde Junho de 2011, intitulado «Portugal na hora da verdade – como
vencer a crise nacional».
Para explicar «o caminho tortuoso que temos de percorrer»,
avisa-nos o famoso autor que, «para que seja sustentável, a dívida pública
nacional tem de crescer a um ritmo inferior ao crescimento económico». Ora, «de
acordo com os cálculos do FMI, para ser sustentável, a dívida pública nacional exige
que as autoridades económicas portuguesas consigam alcançar excedentes
orçamentais primários a rondar os 4 % ou 5 % anuais, algo que nunca foi
alcançado na era democrática». (Estará o nosso Álvaro a apelar a um novo
salazarismo?).
Seja lá como for, explica-nos o consagrado autor que, mesmo
recorrendo a «eventuais receitas das privatizações», à «venda de imóveis» do
Estado, ou a uma «hipotética venda de parte das reservas de ouro à guarda do
Banco de Portugal», «a verdade é que a nossa dívida pública alargada é de tal
modo elevada, que é provável que nem assim consigamos pagá-la nas próximas
décadas». Ora, «face aos exorbitantes montantes da nossa dívida e ao crescente
peso dos juros, é bastante possível que, mais cedo ou mais tarde, um governo português
se declare impotente para pagar a totalidade da dívida pública». Ou seja –
remata Álvaro – «é muito possível que cheguemos a uma situação em que o Estado
português se veja forçado a reestruturar a sua dívida pública junto dos
credores internos e externos». Mais: «é igualmente possível, e provavelmente
desejável, que essa renegociação seja levada a cabo ao mesmo tempo que uma
reestruturação da dívida de outros países europeus». (Leu bem: Álvaro fala
claramente em «renegociação»!).
Foi deste modo que um «esquerdista» chamado Álvaro abraçou a famosa
tese da «inevitabilidade de uma reestruturação da dívida dos países europeus em
dificuldades», defendida por «economistas proeminentes como Kenneth Rogoff,
Barry Eichengreen, Nouriel Roubini, entre muitos, muitos outros» - como Álvaro
faz questão de sublinhar com veemência. (Os «esquerdistas» são uma praga!).
Como explica o nosso autor: «Esta reestruturação abrangeria não só
um reescalonamento da dívida pública nacional (isto é, uma negociação com os
nossos credores de maturidades mais longas para as obrigações do Estado), mas
também uma diminuição do valor da dívida (os chamados haircuts da dívida). Mais: a fazer-se esta reestruturação da dívida
pública nacional, ela devia englobar não só a dívida pública detida pelos
estrangeiros, como também a dívida interna, incluindo uma renegociação das
próprias parcerias público-privadas (PPP)».
Et voilá! Aqui temos como um «esquerdista» de
direita (passe o absurdo) explica o que há para «renegociar» ao famoso sociólogo
ex-estalinista da «nova direita» (aselhas, os cristãos-novos da política!). Note-se
que o insigne sociólogo é perito em perguntas obscenas e provocatórias, como aquelas
que fez, em 10 de Janeiro de 2012, num canal de tv em que se debatia, nada mais
nada menos do que, o «racionamento da saúde». Uma: «Intervenções cirúrgicas
depois dos 70, dos 80, dos 90… Até onde é que se deve ir?». Outra: «Pagar
hemodiálises a pessoas com mais de 70 anos, faz sentido?». Não, não foi Manuela Ferreira Leite
quem colocou a questão, foi ele, e ela limitou-se a secundá-lo na crueldade.
Tal como a um cidadão pobre com mais de 70 anos não se deve recusar
a hemodiálise, também a um país pobre com mais de 800 anos não se deve recusar uma
bóia de salvação quando está a afogar-se. Discute-se se somos miniatura do Titanic ou réplica do Costa Concórdia. Tanto faz, desde que a
direita não nos faça adornar e não nos afunde, garantindo salva-vidas apenas
aos que tudo têm.
«DN»
de 19 Julho 2012