sexta-feira, 31 de outubro de 2008

OS RATOS A COMER O QUEIJO

HÁ POUCOS DIAS, no acto público de lançamento de um livro sobre «A corrupção e os portugueses» (da autoria de dois professores do ISCTE, Luís de Sousa e João Triães) a procuradora-geral adjunta Maria José Morgado (autora do prefácio) afirmou que não existe uma estratégia de combate à corrupção em Portugal e defendeu a criação de um sistema integrado de prevenção deste fenómeno, designadamente a constituição de uma base de dados única, sem o que não será possível tornar mais eficaz o combate à corrupção, de modo a permitir «apanhar o rato enquanto come o queijo».
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A metáfora não podia ser mais oportuna, tendo em vista o surpreendente «lapso» que terá sido cometido por alguém, ainda não identificado, que decidiu introduzir na proposta de Orçamento de Estado para 2009 uma alteração à lei de financiamento dos partidos, que tornaria outra vez possível os donativos privados em dinheiro vivo, e não apenas, como agora sucede, através de cheques ou transferências bancárias.
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A marosca foi detectada pelo Diário Económico, mas o certo é que, até agora, ainda não foi possível identificar o rato que queria comer o queijo. Para grande espanto do estimável público, nem o primeiro-ministro nem o ministro das Finanças, principais responsáveis pela proposta de OE, conseguiram descobrir quem foi o ‘safardana’ que, segundo eles, cometeu este mero ‘lapso’ comendo-lhes ‘as papas na cabeça’.
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Curiosamente, também há poucos dias, o presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, Miguel Fernandes, admitiu publicamente que este organismo não tem capacidade para controlar a corrupção associada aos donativos, acrescentando que só a alteração da legislação em vigor permitiria uma fiscalização eficaz das contas dos partidos. Queixume que caiu no ‘saco roto’ do inevitável dr. Vitalino Canas, porta-voz do PS, que mandou Miguel Fernandes ‘bugiar’, reclamando dele «maior eficácia, menos queixas e mais trabalho» – para gáudio dos ratos que comem o queijo.
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Como isto anda tudo ligado, convém salientar que a directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, Cândida Almeida, também alertou, há poucos dias, para o regresso da corrupção «à moda de Al Capone», recordando as «prendas» que o famoso gangster de Chicago oferecia aos agentes da autoridade, e afirmando que «faltou coragem», na recente reforma penal, para combater a corrupção. Em suma: podem os ratos estar descansados que ninguém vai apanhá-los a comer o queijo.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

MAGOS DA MATEMÁTICA

A ESPECTACULAR E FULGURANTE subida das notas positivas nos exames, sobretudo de Matemática, tanto no ensino básico como no secundário, é comparável a um fenómeno do Entroncamento, só possível em Portugal.
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Em 2008, nada menos do que 1.052 escolas básicas conseguiram aquilo que, em 2007, só 222 tinham conseguido. De 83 por cento de ‘chumbos’ em 2007 desceu-se para 26 por cento em 2008. Estamos perante um esforço titânico de aprendizagem ou um caso de pura magia estatístico-política?!
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Estes resultados seriam motivo de grande regozijo, se não pesasse sobre eles a suspeita de ter havido uma acentuada diminuição do nível de exigência nos exames (não apenas de Matemática) para melhorar substancialmente as estatísticas em ano eleitoral. O nacional-porreirismo está em marcha!
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Assim, o parecer do Conselho Nacional da Educação a sugerir que os ‘chumbos’ sejam abolidos nem precisa de ser adoptado pelo Ministério. Basta ‘servir’ exames por medida a todos os cábulas, transformando-os em magos da Matemática. Exulta a Ministra e regozijam-se os paizinhos. Perdem os meninos e perde o País.
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É irresistível a comparação com aquilo que se passa no futebol português. Diz-se que a Liga Sagres está mais ‘competitiva’. Mas isso deve-se, infelizmente, à acentuada diminuição da qualidade das equipas chamadas ‘grandes’ e não, propriamente, ao facto de as equipas ‘pequenas’ e ‘médias’ terem subido de nível.
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Matemática e futebol em Portugal, a mesma luta? Pelo menos é o que parece!

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

«O Capitalismo Total» - Prefácio

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O CAPITALISMO TOTAL é a expressão do domínio absoluto do capitalismo financeiro sobre a economia real, a sociedade civil e o Estado, obedecendo a um único propósito, que se sobrepõe a todos os outros: o enriquecimento dos accionistas e dos gestores que os servem, segundo normas de rentabilidade excessivas e, a prazo, insustentáveis.
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Assim como «as árvores nunca crescem até ao céu», também não se vê como os mercados bolsistas poderão continuar a crescer a taxas quatro a cinco vezes superiores às taxas de crescimento anuais das economias ocidentais. Como salienta o autor deste livro, se tal acontecesse, «os lucros tomariam conta, pouco a pouco, de todos os lugares disponíveis para não deixarem nenhum aos rendimentos do trabalho». Ou seja, «a prazo, o capital seria o único factor de produção a ser remunerado». O que seria absurdo.
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Os efeitos do capitalismo financeiro, motor de uma globalização sem regras, sem freios e sem contrapoderes dignos desse nome, são devastadores: total desvalorização, fragmentação e precarização do trabalho; diminuição progressiva do poder de compra dos salários; deslocalizações, subinvestimento e desemprego; fusões e concentrações, sem outro critério que não seja o do aumento da rentabilidade através da diminuição dos encargos sociais; desmantelamento dos serviços públicos e dilapidação do Estado.
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Como a crise actual tem vindo a demonstrar, a especulação, que está na base do capitalismo financeiro, é comparável a uma bomba de fragmentação, a uma nova arma de destruição maciça que atinge, em diferentes graus, toda a gente sem distinção; tanto os países pobres como os desenvolvidos; tanto as classes sociais mais desfavorecidas como as classes médias, cujo poder de compra continua a declinar perigosamente.
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Tal como previa e temia o grande economista norte-americano Thorstein Veblen faz agora cem anos (1908), ao salientar os desajustamentos entre a produção industrial e a especulação financeira, o capital industrial acabou por ser absorvido e dominado pelo capital financeiro. É este que, na era da globalização, comanda a economia real e dita as suas leis ao mercado, à política, ao Estado-nação e a cada cidadão esquizofrenicamente dividido entre os papéis de consumidor, de trabalhador e, às vezes, de accionista.
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O autor deste livro, antigo banqueiro e gestor de grandes empresas, explica-nos com bastante clareza que o capitalismo moderno está organizado como uma gigantesca sociedade anónima, uma sociedade de proprietários igualmente anónimos. Na sua base, cerca de 300 milhões de accionistas, 90 % dos quais concentrados na América do Norte, na Europa Ocidental e no Japão, controlam a quase totalidade da capitalização bolsista mundial. Regra geral de meia idade, com formação superior e um nível de rendimentos elevado, esses accionistas anónimos confiam cerca de metade dos haveres financeiros que possuem a várias dezenas de milhares de gestores por conta de outrem, cujo único objectivo é o de enriquecer os seus mandantes, tirando partido da mundialização.
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Não pondo em causa o natural desejo de enriquecimento e a legítima vontade de empreender e de prosperar, o problema é que a fronteira que separa tais propósitos da pura cupidez é sistematicamente ultrapassada. Dado que as bonificações e stock options de que podem beneficiar dependem dos resultados obtidos, esses gestores pagos a peso de ouro sentem-se impelidos a alcançar performances cada vez mais surpreendentes em prazos sempre mais curtos. O desejo de ganhos ilimitados transforma-os em predadores. Taxas de rentabilidade do capital da ordem dos 15 a 20 %, só para distribuir dividendos, são totalmente absurdas, irrealistas e insustentáveis a longo prazo. Os lucros obtidos em bolsa, graças à especulação financeira, correspondem cada vez menos ao valor real das empresas e raramente são contrapartida de bens produzidos ou serviços prestados.
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Do mesmo modo, os vertiginosos aumentos de preços a que temos assistido nos últimos meses não têm qualquer relação com a realidade dos produtos a que se referem, sejam eles o petróleo, o aço, o cobre, o trigo, o milho, o arroz, o leite ou o imobiliário. A especulação nos mercados a prazo vai provocando bolhas especulativas que podem rebentar não se sabe quando. Fenómeno típico de uma economia de casino, em que as apostas se sucedem para inflacionar artificialmente os preços e, portanto, os lucros.
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Sob o signo do capitalismo financeiro, a «desigualdade fundamental entre ricos e pobres, à escala do globo», não pára de aumentar. Os «verdadeiramente ricos» (high net worth individuals) e os «ultra-ricos» (ultra high net worth individuals) afastam-se cada vez mais do resto da população mundial. Só 77 mil famílias «ultra-ricas» (menos de 1 % das «verdadeiramente ricas») detêm 15 % da riqueza mundial, ao passo que 50 % dos trabalhadores do planeta (1,4 milhares de milhões de famílias, 2,8 milhares de milhões de indivíduos) vivem com menos de dois dólares por dia. O capitalismo total é, de facto, um capitalismo sem projecto e sem preocupações sociais, dominado pela «execrável sede do ouro» de que falava Virgílio. Bastará referir que «5 % da população mundial, metade da qual nos EUA, detém nas suas mãos a quase totalidade da riqueza bolsista do planeta». O problema é que, conforme salienta o autor deste livro, «o actual modo de vida ocidental não é generalizável ao conjunto do planeta: 20 % dos seus habitantes já consomem 80 % dos seus recursos». Resta saber qual será o ponto de saturação.
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A acumulação de tanta fortuna em tão poucas mãos dá que pensar. E a pergunta justifica-se: onde começa a injustiça, em que momento se torna ela intolerável? Para o autor, a questão só pode obter resposta no plano da moral. Ele considera, aliás, que «o poder dos accionistas é, enquanto tal, invulnerável», e que «deitar abaixo o sistema num só país não teria qualquer efeito dado que a sua dominação é mundial». Por isso mesmo, acha que «será mais eficaz descrever a articulação das forças que governam a economia mundial», porque, «para mudar a partir de dentro a economia de mercado (…), é preciso ser capaz de expor em detalhe a sua técnica, decompor os seus mecanismos, saber quais alterar, onde pôr um travão e onde conceder mais liberdade» aos agentes económicos.
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Extremamente moderado nas soluções que propõe, nem por isso o autor é menos lúcido e radical nas críticas que faz. Por exemplo: quando salienta que «a norma técnica substituiu a lei, a comissão independente substituiu o legislador, o perito substituiu o homem político e a organização internacional substituiu o Estado»; quando sustenta que «o responsável político e o intelectual locais estão a tornar-se, contra a sua vontade, nos álibis democráticos de um poder superior e inacessível»; quando afirma que «a própria democracia não é mais do que um placebo local, sem efeito real contra a usurpação tecnocrática»; quando admite que o capitalismo financeiro continua a expandir-se sem limites, «com o risco inexplorado de uma derrocada mortífera»; quando reconhece que, «sob a aparência da liberdade, tornámo-nos dependentes» de um sistema demolidor.
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A maior dificuldade, conforme salienta o autor, reside em saber como reformar o capitalismo financeiro, como pôr termo aos seus abusos, como impedir que a opulência engendre tanta desigualdade, como proibir a privatização generalizada de bens comuns, como lutar contra a miséria e como conter a avidez do lucro, sem que tudo isso implique a destruição da economia de mercado e impeça a urgente reabilitação da democracia, do pluralismo, da liberdade, da solidariedade e da coesão social. Em suma: como conseguir que verdadeiras reformas evitem a eclosão de revoltas e, porventura, de revoluções?
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Raros são os livros escritos por especialistas que conseguem explicar aos leigos com tão grande clareza a complexidade e perversidade dos mecanismos do capitalismo financeiro que a todos afecta. Este é seguramente um desses livros. Vale a pena lê-lo.


Lisboa, 23 de Julho de 2008