terça-feira, 29 de abril de 2008

Sinais de decadência política

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VAI LONGE O TEMPO em que a política era, antes de mais, um combate de ideias sustentadas por pessoas. Hoje, a política é, sobretudo, uma disputa entre pessoas com poucas ou nenhumas ideias. É uma luta entre personalidades mais ou menos circenses, que se exibem como imagens de marca e se comportam como actores de telenovela no grande palco mediático em que se representa a política quotidiana.
Os partidos de poder e o próprio Estado transformaram-se, nas últimas décadas, em produtores de espectáculos exibidos em sessões contínuas. A vida política passou a ser uma sucessão ininterrupta de encenações medíocres para entreter telespectadores, e não para esclarecer cidadãos eleitores. Os políticos que aspiram ao poder, no partido ou no Estado, não são mais do que actores que cumprem um guião previamente elaborado por especialistas de imagem, comunicação, marketing e sondagens.
A política está, hoje, reduzida à imagem dos seus protagonistas, quase sempre superficial, ideologicamente indiferenciada e sem substância. O poder político formal, tanto no Estado como nos partidos dominantes, identifica-se com um rosto e um estilo, o corte dos fatos e a cor das gravatas. Não com um programa ou um conjunto de ideias e de políticas públicas. O discurso é oco e «politicamente correcto».
O verdadeiro poder ou poder real já não reside, aliás, nos órgãos de soberania do Estado democrático, designadamente nos Governos e nos Parlamentos, mas em outras entidades e instituições, sobretudo nos grandes grupos económicos e financeiros e nas elites de empresários, gestores e tecnocratas que os dirigem. É no ‘berço’ desses grupos poderosos que os partidos dominantes e os seus dirigentes vão ‘amamentar-se’. E já se sabe que «a mão que embala o berço é a mão que governa o mundo».
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TUDO ISTO É do conhecimento público e explica muito do que se passa nos palcos mediáticos da política. Para quem já o tenha esquecido, aí está, para avivar a memória, o espectáculo delirante e patético proporcionado pela crise em curso no PPD/PSD, como tanto gosta de o designar Pedro Santana Lopes (PSL). Como é hábito, não se discutem políticas, discutem-se pessoas. No palco mediático da crise, nenhum lugar para as ideias consistentes e sérias, todo o lugar para as personalidades e suas idiossincrasias.
É a imagem pessoal dos candidatos, o estilo, a capacidade de atracção mediática de cada um, que interessa pôr em confronto. Não propriamente as ideias e programas que eles venham, eventualmente, a apresentar. Ninguém melhor do que PSL sabe disso. Por instinto ou por cinismo, pouco importa. É exactamente por saber disso que PSL faz tábua rasa do seu currículo e das suas prestações políticas mais recentes com a inocência perversa dos inimputáveis ou, se quiserem, o descaramento dos irresponsáveis.
Pedro Santana Lopes está sinceramente convicto de que foi um bom Primeiro-Ministro e um óptimo Presidente da Câmara. E acha que só não foi ainda melhor porque sinistras forças de bloqueio se conluiaram para lhe tramar a vida e pô-lo no olho da rua. PSL considera-se uma vítima. Mas tem-se em altíssima conta. A sua megalomania já o levou a comparar-se a Sílvio Berlusconi. É o seu mito do eterno retorno.
Como não é multimilionário, nem dono de um império mediático ao seu dispor, PSL supre tais carências fazendo valer o capital mediático constituído pela sua própria pessoa. Tal como Benito Mussolini, modelo de Berlusconi, PSL quer «fazer da própria vida a sua obra-prima». E certamente não desdenharia subscrever estas palavras de Il Duce, escritas já lá vão oitenta anos: «É a maior prova de abnegação que eu poderia dar para edificação dos meus semelhantes: apresentar-me a mim mesmo».
A esta luz, percebe-se melhor o autismo de PSL, que se vê a si próprio como o melhor actor político, o melhor produto mediático à disposição do PPD/PSD, rótulo de uma embalagem sem conteúdo que ele não se cansa de promover em vão. E, no entanto, mesmo que venha a ser derrotado em mais esta corrida para a chefia do partido, poucos duvidam de que hão-de ser os próprios media a ajudá-lo a recuperar de mais um revés. È que o poder mediático precisa de PSL a «andar por aí», para entreter o pagode.

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AO PONTO A QUE ISTO CHEGOU, não espanta o crescente desinteresse pela política e o descrédito que ela suscita. PSL é apenas um epifenómeno, um sintoma que sobrevém numa doença já declarada e que afecta seriamente os partidos de poder em Portugal. No PS também há «casos sérios», mas a maioria absoluta tem servido de cimento às hostes. Já o PPD/PSD, tem o supremo azar de estar na oposição, sem rumo, sem ideias e sem programa desde que o governo do PS se encostou à direita e lhe puxou o tapete.
A decadência da política é consequência de múltiplos factores. A indiferenciação ideológica e a vacuidade do discurso político são certamente os mais chocantes.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Jardim, Cavaco e a Democracia

AO CABO DE TRÊS DÉCADAS de condescendência, complacência e pusilanimidade confrangedoras, por parte da maioria dos dirigentes políticos nacionais e dos titulares dos órgãos de soberania da República, já é demasiado tarde para pôr na ordem Alberto João Jardim e obrigar o truão cesarista e telepopulista que governa a Madeira a respeitar os seus adversários políticos e as instituições representativas do Estado democrático.
O sentimento de total impunidade de que Jardim beneficia, no arquipélago em que vive politicamente entrincheirado, é que lhe dá alento para a demagogia e o insulto, a provocação e a chantagem permanentes, a intolerância para com os adversários e o total desprezo pelas instituições democráticas, que ele curto-circuita sistematicamente.
Como todo o cesarista que se preza, Alberto João Jardim continua a alimentar a ambição ilegítima de exercer o poder sem limites, de governar sem oposição e de impor a sua vontade política abafando as vozes dos que discordam e liquidando a democracia representativa. Como é um truão telegénico, grande comediante da era da vídeo-política, não hesita em utilizar a televisão para praticar a demagogia e multiplicar as provocações e as chantagens, as ameaças e os insultos. É um demagogo telepopulista e pós-fascista.
Jardim recorre frequentemente à palhaçada e à linguagem desbragada, por vezes pseudo-revolucionária e anti-capitalista, como armas políticas de arremesso, não apenas contra os «cubanos» e os «maçons» do continente mas, sobretudo, contra o sistema. Ele sabe como alimentar o sentimento de claustrofobia política insular, invocando ameaças e conspirações imaginárias e apontando a dedo o inimigo colonialista que espreita a sua oportunidade em Lisboa para reduzir a Madeira à mera condição de colónia ‘africana’.
Convém não subestimar Alberto João Jardim, mas também importa não temer o ‘bicho’. Quando ele ataca directamente a democracia representativa, chamando «bando de loucos» aos deputados da oposição no parlamento regional, está a ultrapassar, mais uma vez, todas as marcas. E a atitude mais adequada e corajosa não será, propriamente, a de dizer: «Não mexam no bicho, que ele morde!». Porque, obviamente, é dessa atitude que o ‘bicho’ está à espera, para continuar a ‘morder’ e a enxovalhar quem se agacha.
Foi com surpresa que vi o Presidente da República invocar o «direito de reserva» - não o «dever» mas o «direito», note-se! – para se eximir a uma condenação pública do comportamento antidemocrático de Jardim. Não se quis meter em sarilhos, metendo na ordem o truão que governa a Madeira. Fez mal. Tal como fez mal em aceitar que fosse suprimida a habitual sessão solene da Assembleia Legislativa, o órgão de representação democrática por excelência. Cavaco Silva confirma, assim, a suspeita, gerada enquanto foi Primeiro-Ministro, de que também não aprecia especialmente parlamentos. Há sinais que perturbam e este é um deles. É lamentável que Jardim continue a ser o último a rir.
«Sol» de 19 Abr 08