sexta-feira, 13 de abril de 2007

A ESTÉTICA DO ALUMÍNIO

SEMPRE FUI UM O’NEILLISTA, confesso. Pelo menos desde quando me atrevi a dizer em público Um adeus português, era ainda um rapazelho, muito verdes anos, a apanhar bonés na vida. E não há-de ser agora, que já palmilho há um bom par de anos a casa dos sessenta, que vou deixar de o ser. Burro velho não aprende línguas, nem vira casacas.

Esta advertência é indispensável para se perceber melhor a grande incomodidade e a imensa desdita de quem vive em «ALUMINIÓPOLIS». Já lá vão mais de vinte anos, o poeta avisou em prosa: «O alumínio está a expandir-se assustadoramente». Mais: «Por estes andares, Lisboa vai ter, não tarda muito, poentes e nascentes de alumínio». Já tem. Todo o país se passou, paulatinamente, para o alumínio. Em sentido real e figurado.

A estética do alumínio, com a sua caixilharia refulgente, saltou do urbanismo e da arquitectura de marquise para a política, a literatura, a música, os jornais, a rádio e a televisão de cordel. O «mau gosto gritante que o alumínio inculca» não é privilégio de mestres-de-obras e edis pragmáticos. É democraticamente partilhado por demagogos de feira, políticos de plástico, escrevinhadores a peso, publicistas a metro, apresentadores à hora, repórteres ao minuto, pantomineiros sem eira nem beira, aves canoras em saldo.

A estética do alumínio aposta a fundo na expressão de realce despropositada. É o frigorífico na sala de jantar com naperon em cima. É a inútil multiplicação de rotundas, cada qual com o seu mamarracho ao centro. É a bossa de camelo incrustada num corpo escorreito, que fica marreco. É o discurso da banha da cobra, que despreza a subtileza. É o riso alarve, que despreza a ironia. É o sonho dos néscios e o pesadelo dos incautos.

«Verdadeiros berros» e «autênticas fífias de alumínio» brotam insidiosamente de inúmeras fachadas, aproveitando todas as «janelas de oportunidade» para se expandirem e encaixilharem as suas marquises no nosso quotidiano de cidadãos desprevenidos. Já se sabe que uma larga maioria gosta e uma curta minoria não. Por isso, a pergunta do poeta lá se vai repetindo com ironia e desalento: «Então não é verdade que estamos kitsch?».

A democracia tem perversidades destas. É como «uma mulher em forma de S, de roupão florido e canteiro de papelotes à cabeça». Se estivesse vestida de papel de jornal «não faria mais restolho». É assim «porque é mais prático e, o que é pior, para tantos e tantos MAIS BONITO», como lamentava O’Neill. Mas também porque assim fica mais barato e é mais lucrativo. Indiferente ao gosto, o que o bezerro de oiro quer é facturar.

O o’neillismo é um pessimismo, como já perceberam. Mas não se confunde com resignação cristã. Mantém a lucidez e a ironia. Chateia-se solenemente. Protesta em voz alta. Indigna-se e não se conforma com a expansão do alumínio, reclamando o recurso a materiais mais nobres. Sem se iludir, todavia, quanto ao futuro da construção civil, dos mestres-de-obras e dos capatazes neste cada vez mais metafórico país encaixilhado em alumínio. Nem, aliás, quanto ao futuro da Pátria, da República, da Europa e do Mundo.

NOTA: Esta crónica foi escrita para o derradeiro número da Revista «6ª» do «DN», cuja publicação deveria cessar no dia 13 de Abril de 2007, mas, afinal, cessou no passado dia 6 de Abril.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

UMA HISTÓRIA DE SERVIDÃO

UMA NAÇÃO SUJEITA DURANTE SÉCULOS ao terror físico e psicológico exercido pelos czares, os boiardos, a igreja ou o partido único dificilmente se libertará das tutelas que a oprimiram e dos hábitos que a servidão e a submissão nela inculcaram. Parece ser esta a única conclusão a retirar de quinhentos anos de história da velha Rússia, desde o sinistro reinado de Ivan o Terrível, entre 1533 e 1584, passando pela abdicação do czar Nicolau II, em Março de 1917, pela vitória da revolução bolchevique, em Outubro de 1917, pela «entronização» de José Estaline, em 1924, até à morte do czar vermelho, em 1953.

É pelo menos esta a tese que defende o ex-diplomata russo Vladimir Fédorovski, num interessante ensaio histórico intitulado Le Roman du Kremlin, publicado em 2004. A partir do Kremlin - a fortaleza e o conjunto de igrejas e palácios que albergam a sede do poder, em Moscovo - Fédorovski percorre a história da Rússia, desde Ivan o Terrível até à actualidade, explicando como o poder político foi exercido - quer durante a tirania czarista quer durante a ditadura do proletariado - sobretudo graças à solidez da parceria sempre renovada entre os seus sucessivos detentores e uma temível polícia secreta.

A essência do poder, na Rússia, parece estar contida no compromisso assumido pelo ainda jovem czar Nicolau II, durante um discurso proferido perante a sua corte, no Kremlin: «Estou satisfeito por ver aqui os representantes de todas as classes, que vieram testemunhar os seus sentimentos de súbditos obedientes e submissos. Eu acredito nesses sentimentos, que sempre animaram o povo russo. E quero que saibam que vou manter o poder absoluto, com tanta firmeza como meu pai». Esta era uma claríssima advertência dirigida a todos quantos ainda alimentavam ilusões liberais ou reformistas. O novo czar correspondia, assim, aos alertas feitos pela sua temível polícia secreta, a Okhrana.

Foi crucial o papel desempenhado pela polícia política e pelos seus espiões, quer dentro quer fora das fronteiras da Rússia e tanto durante o regime czarista como durante o regime comunista. Esta é a faceta mais interessante do livro, ao explicar a evolução da «megapolícia secreta» russa. Desde a jurisdição de excepção - a opritchnina - instituída pelo crudelíssimo e paranóico Ivan o Terrível, passando pela Okhrana, dos Romanov, e pelo KGB, de Estaline, até ao actual FSB, cujos poderes foram bastante reforçados por Vladimir Putin (antigo coronel do KGB). Por isso, há quem tema «um KGB em vias de reconstituição» e alerte para um «processo de sovietização e restauração» da Rússia.

Impressiona esta atracção pelo mal. E o fascínio que os tiranos exercem. Estaline é um modelo. Tão cruel como Ivan o Terrível, o czar vermelho estudou com minúcia os métodos de tortura que o próprio Ivan praticava. Tão tímido e tão asceta como Salazar, vivia num «modesto apartamento de três divisões» improvisado no gigantesco Kremlin. Nada pior do que uma nação humilhada para desejar o regresso dos seus fantasmas.
«DN-6ª» de 6 Abr 07