sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

MÚSICA E PALAVRAS


QUANDO MENCIONAMOS UMA ÓPERA, a primeira referência que nos ocorre é o nome do compositor, isto é, do autor da partitura musical. A partir daqui, é habitual passarmos a discutir os intérpretes que preferimos - sejam os cantores, sejam os maestros. Também se tornou frequente comentar as encenações e, até, as cenografias. Bem mais raro é falar dos autores dos libretos, mesmo quando se trata de excelentes escritores, dramaturgos e poetas - ou, até, dos próprios compositores. «Prima la musica - dopo le parole»? «Prima le parole - dopo la musica»? Para uma larga maioria de amantes da Ópera, o predomínio da música sobre as palavras parece não oferecer, hoje, qualquer dúvida.

E, no entanto, é evidente que a Ópera nunca poderá dispensá-las: nem a música, nem as palavras. Não existe Ópera sem partitura ou sem libreto. Mesmo sendo verdade que uma óptima partitura consegue sobreviver a um libreto medíocre, ao passo que uma partitura medíocre nunca poderá salvar um óptimo libreto. Seja como for, são vários os libretistas de grande talento que conquistaram lugares de relevo na história da Ópera, ao longo dos 400 anos que ela já percorreu. Sendo o espaço exíguo para mencioná-los um por um, optei por referir apenas três, entre os melhores, dadas as magníficas parcerias que formaram com três dos maiores compositores da história da Música.

Na segunda metade do século XVIII, é incontornável a parceria constituída pelo divino Mozart e o libertino abade italiano Lorenzo da Ponte – autor de 36 libretos e das pitorescas Memórias de uma vida tumultuosa, digna de Casanova. Três óperas bastaram para o imortalizar, ao escrever para Mozart os libretos de três obras-primas: Le Nozze di Fígaro (1786), Don Giovanni (1787) e Cosi Fan Tutte (1790). Uma dupla infernal, em que o génio do compositor de modo algum diminui o talento do libretista.

Na segunda metade do século XIX, outra dupla notável reuniu Giuseppe Verdi e Arrigo Boito, excelente poeta italiano, além de compositor e libretista. Colaborou com Verdi na remodelação de Simon Boccanegra (1881), dando um contributo decisivo para a transformar numa ópera admirável. Mas foi, sobretudo, o autor dos libretos de outras duas obras-primas de Verdi: Otello (1887), a partir da peça homónima de Shakespeare; e Falstaff (1893), a partir de duas outras peças de Shakespeare: As Alegres Comadres de Windsor e Henrique IV. Boito mostra-se à altura de Shakespeare e de Verdi.

Já no princípio do século XX, a magnífica colaboração entre Richard Strauss e o excelente poeta e dramaturgo austríaco Hugo von Hofmannsthal deu origem a algumas óperas memoráveis, sobretudo: Elektra (1909), Der Rosenkavalier (1911), Ariadne auf Naxos (1913), Die Frau Ohne Shatten (1919) e Arabella (1933), esta última estreada já depois da morte de Hofmannsthal, em 1929. O inegável valor intrínseco dos libretos foi admiravelmente posto em relevo pelo génio de Richard Strauss. Desça o pano!

«DN-6ª» de 23 Fev 07
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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

SOB O SIGNO DE ORFEU

Claudio Monteverdi
FOI HÁ 400 ANOS, em Mântua, provavelmente no dia 24 de Fevereiro de 1607, que nasceu esse género genuinamente europeu da grande música a que chamamos Ópera. O nascimento foi auspicioso e ficou a dever-se, acima de tudo e todos, ao génio musical de Claudio Monteverdi, que concebeu uma «favola in musica» intitulada L’Orfeo, a partir de um libreto escrito por Alessandro Striggio, secretário de Vincenzo Gonzaga, Duque de Mântua, patrono (e nem sempre bom patrão) do grande compositor desde 1590.

Poderemos imaginar o cenário em que foi concebida a primeira grande ópera da história da música, se pensarmos que o Palácio Ducal de Mântua era, todo ele, decorado por obras de grandes artistas da Renascença, como Corregio, Il Perugino, Mantegna ou Ticiano - e que Rubens foi o pintor oficial do Duque de Mântua entre 1600 e 1608.

Protegido por Vincenzo Gonzaga foi também Torquato Tasso, cuja poesia serviu de inspiração para muitos dos belíssimos madrigais compostos por Monteverdi. Da obra mais famosa de Tasso, Jerusalém Libertada, Monteverdi escolheu as mais belas estrofes do Canto X para compor outra das suas obras-primas, Il Combattimento di Tancredi e di Clorinda, estreada em 1624, quando o «oracolo della musica» já vivia em Veneza.

Mas a ópera L’Orfeo é um marco incontornável da história da música, porque é a obra fundadora da mais completa de todas as artes, porventura a «arte total», justamente por incorporar todas as outras artes – desde a música à literatura, passando pelo teatro e pela pintura. E é uma ópera sublime, de rara emoção e beleza, na qual o texto, a intriga, a arte cénica, o canto e a música instrumental se conjugam numa perfeita síntese.

A beleza de L’Orfeo é comparável ao esplendor das Vespro della Beata Vergine, obra publicada por Claudio Monteverdi em 1610, sem dúvida alguma a mais admirável e mais impressionante de todas as obras de música sacra alguma vez ouvidas, antes das Paixões de Bach. Tanto L’Orfeo como as Vespro della Beata Vergine ilustram o talento verdadeiramente genial de Monteverdi, que consegue ser inovador e, mesmo, profético, sem renunciar à herança da polifonia quinhentista, que ele incorpora no estilo novo. Foi ao operar a síntese entre tradição e inovação, justapondo o antigo e o moderno de modo tão criativo, que Monteverdi se tornou num compositor pioneiro e revolucionário.

A escolha do mito de Orfeu como tema da sua primeira obra dramática, justifica-se duplamente. Por um lado, enquanto «drama grego», tal mito ajusta-se na perfeição ao estilo novo, que cultiva a antiguidade clássica. Por outro lado, como salientou Nikolaus Harnoncourt, o mito de Orfeu oferece a Monteverdi uma «perspectiva programática»: a de «cantar o poder da Música, que triunfa sobre tudo e todos». Como disse Platão: «ela penetra no interior da alma» e «apodera-se dela da forma mais enérgica». Com a música de Monteverdi, ascendemos aos domínios do inefável. O seu fascínio é irresistível.

«DN-6ª» de 16 Fev 07

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

A POLÍTICA DO MEDO

A «CRUZADA ANTICOMUNISTA» e a «caça às bruxas» desencadeadas pelo senador Joe McCarthy no começo da Guerra Fria, entre 1950 e 1954, constituem um dos capítulos mais negros e vergonhosos, não só da história do Partido Republicano, mas da própria história da democracia nos EUA. Num excelente e documentado ensaio intitulado The Age of Anxiety - McCarthysm to Terrorism, o jornalista e historiador norte-americano Haynes Johnson recorda outro episódio negro da história dos EUA: a onda de histeria colectiva provocada pelo Grande Pânico Vermelho (Great Red Scare), nos anos que se seguiram à I Guerra Mundial. Mas o seu objectivo fundamental é analisar e descrever, em pormenor, o McCarthysmo, pondo em relevo os paralelismos e as semelhanças que devem estabelecer-se entre esse período negro da história dos EUA e o período actual, iniciado já no século XXI, após os atentados de 11 de Setembro de 2001. Como Haynes Johnson salienta, o McCarthysmo continua a ser uma história sem fim à vista.

Tal como na época do McCarthysmo, a América de George W. Bush tem vindo a experimentar novos exemplos de tácticas de manipulação e intimidação características do senador McCarthy. Desta vez, porém, a iniciativa foi do próprio Presidente. Desde os atentados de 11 de Setembro, sucederam-se os exemplos de assassínios de carácter, de ofensas ao bom nome dos opositores, de acusações de falta de patriotismo dirigidas aos críticos da administração, de pressões exercidas sobre os meios de comunicação social, o Congresso e o poder judicial, de fugas selectivas de informação classificada visando a demonização de dissidentes, destruindo carreiras de funcionários públicos e manchando a reputação de oficiais das Forças Armadas. Tudo isto, restringindo e violando direitos, liberdades e garantias, recorrendo a métodos inquisitoriais do tipo «caça às bruxas» para intimidar os que se atrevem a protestar publicamente contra o Governo e não hesitando em invocar o segredo de Estado para encobrir os erros e mentiras do Governo.

O McCarthysmo foi o resultado da conjugação de ansiedades, medos e suspeitas difundidos na população, para criar um clima de histeria e paranóia na vida pública e na retórica política. Esses medos e suspeitas foram explorados e exacerbados, com cinismo e demagogia, por políticos oportunistas e sem escrúpulos, como Joseph McCarthy, que nunca hesitou em recorrer à mentira, à difamação e às falsas acusações. Haynes Johnson salienta que o McCarthysmo marcou indelevelmente, nos últimos 50 anos, a caminhada do Partido Republicano para a direita radical. No McCarthysmo mergulham as raízes do actual movimento conservador. Foi nele que foram beber os antigos esquerdistas que se tornaram neoconservadores. A chamada «cultura de guerra» que contamina os discursos de muitos políticos e intelectuais nos EUA, é outra das heranças do McCarthysmo. Quer no plano interno, quer no plano externo, a política do medo tem sido desastrosa.

«DN» - 09 Fev 07
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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

ÚLTIMOS CIGARROS

HÁ O ALCATRÃO, a nicotina e o monóxido de carbono. Bem sei. Mas há, também, o polónio-210 (210Po), «a pior de todas as substâncias», descoberto em 1898 por Pierre e Marie Curie. É mil vezes mais tóxico do que o plutónio e um milhão de vezes mais do que o cianeto. Dez microgramas bastam para matar, lenta e irreversivelmente. Como no caso do ex-espião soviético Alexandre Litvinenko, envenenado por essa dose letal, que lhe devorou todos os glóbulos vermelhos nas últimas semanas de 2006.

Como explica Fabien Gruhier, num artigo publicado em Le Nouvel Observateur, o polónio-210 está omnipresente na natureza e, mesmo, no organismo humano, embora em concentrações ínfimas, já que é permanentemente produzido pela desintegração do urânio e do tório, abundantes na crosta terrestre. Todavia, os fumadores absorvem mais polónio do que os não fumadores, por causa dos fosfatos ligeiramente radioactivos que são utilizados como fertilizantes nos campos de tabaco. Pior: em estudo científico feito nos EUA afirma-se que a inalação de polónio «natural», via fumo do cigarro, «contribui pelo menos em 90 por cento para os cancros do pulmão dos fumadores».

Aconselhado por um médico especialista, que nem sequer me falou do polónio e me poupou a um sermão sobre os malefícios do tabaco, preparo-me para fumar o último cigarro dentro de poucos dias. O primeiro impulso que tive, nem foi o de reler o célebre monólogo de Tchekov, que interpretei aos 18 anos, mas sim o de voltar a folhear a obra-prima de Ítalo Svevo, A Consciência de Zeno, publicada em 1923 (a Editorial Minerva deu à estampa uma versão portuguesa, pouco rigorosa e sem qualquer data). Espero bem que não me aconteça o mesmo que a Zeno Cosini, com as tentativas repetidas, inúteis e tragicómicas para deixar de fumar enquanto reflecte sobre a sua existência.

As reflexões e interrogações do protagonista, Zeno (ou do escritor, Ítalo Svevo, pseudónimo de Ettore Schmitz), fazem todo o sentido. É pior o vício, ou a obsessão de se libertar do vício? A doença, ou a obsessão da doença? Os dias cheios de cigarros, ou os dias plenos de promessas de não fumar mais? Não será só quando uma coisa ou uma pessoa está a ponto de se perder que o prazer se inflama? Como diria o velho higienista de Goldoni, quererei morrer são, depois de ter passado toda a vida doente? A vida – diz Zeno – parece-se um pouco com a doença. A grande diferença, relativamente às outras doenças, é que a vida é sempre mortal. E não suporta qualquer tratamento.

No leito de morte, após um acidente de automóvel, o escritor viu um sobrinho a fumar e pediu-lhe um cigarro. O sobrinho disse-lhe que não. E Svevo, já com a língua entaramelada, balbuciou: «Este seria verdadeiramente o último cigarro». Foi em 1928. Quase 80 anos depois, espero bem que o semáforo vermelho que me acenderam – e, já agora, o polónio-210 – me intimem a fumar o último cigarro daqui a uns dias.

«DN» - 02 Fev 07
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